A rainha maltrapilha

Quando inesperadamente abri meus olhos para o mundo, fiquei abismado! Há pouco deixara a criança nas grutas da memória e minha visão se transformou num repente. Precisei mergulhar de cabeça dentro do mundo novo que se revelava para acalmar a indignação recém-nascida. Deixei compulsoriamente a passividade da admiração, sacudida que fora pela decepção nascente.

Resquícios de adolescente a burilar dúvidas procedentes e críticas duras, inundaram-me por todos os lados. Os adultos, até então, eu os imaginava sapientíssimos, de respeito, íntegros, honestíssimos. Sabiam eles, do alto de sua glória, coisas misteriosas que eu, pobre criança, levaria décadas para entender, ou jamais entenderia.

Naquele dia, contudo, por uma transformação abrupta da criança ingênua no adulto apavorado, descortinou-se a minha frente o verdadeiro mundo caótico de todos nós. Mergulhei dentro dele para gritar minha revolta com a coragem dos heróis abobalhados. Eu sozinho iria, sem dúvida, mostrar como era fácil transformá-lo em coisa melhor, já que o adulto se desnudou diante de meus olhos marejados de decepção como um autêntico ignorante, sem respeito, sem integridade, sem honestidade… Neste louco afã, fui eu mesmo me transformando em adulto, sem ver que o tempo escorria matreiro, vigiando minhas intenções perdidas.

Curioso, trilhei utopias sonhadoras. Maravilhado, andei da esquerda para a direita, da direita para a esquerda. Nesse absurdo vai-e-vem, entendi a burrice humana e senti desarvorado que a força das idéias salvadoras se esvaía fácil, diante da imbecilidade despudoradamente universal.

Então, conheci as armas e seu poder de persuasão. Vi decepcionado que através delas era fácil impor idéias, boas idéias que depois apodreceriam na contaminação diabólica das ditaduras escancaradas na mão esquerda, escondendo a direita nos porões escuros da tortura eficiente.

Depois, vi as ditaduras exangues substituídas sorrateiramente por estratégias de poder mais eficientes. Percebi a miséria humana eternizada por elites soberanas. Vi a democracia passear pelas ruas como rainha maltrapilha a serviço do poder espúrio.

Hoje, no minguar do tempo, assisto! Sim, apenas assisto! Mas confesso meu estarrecimento contínuo. Talvez agora entenda o ímpeto dos jovens de então na luta revoltada contra o projeto deste mundo desordenado. É a desordem desejada, ansiada, conservada! E é em contraponto a esse ímpeto que vejo hoje, a alienação pachorrenta contemporânea. Foi-se o tempo de ver nas tribunas o gesto nervoso do imberbe, atirando com uma oratória invejável, as idéias do mundo novo. Foi-se o tempo de ver as moças e moços esclarecidos criarem a arte duradoura, permeada de inteligência e advertência ousada.

Está quase na hora da partida, mas, ainda ferve o meu sangue rebelde que quer a mudança da fortaleza e quer a todo o custo assistir novamente o desfile da rainha, mas que esteja ela vestida como rainha verdadeira. Que ela desfile sorrindo e nós todos, fazendo alas, aplaudiremos o renascimento, clonado ou não, de um adulto finalmente inteligente.

Airo Zamoner

é escritor
airo@cepede.com.br

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