A geração 64

Todo caderno literário dos jornalões nacionais (e alguns provincianos também) abre espaços generosos para a Semana de Arte Moderna de 1922. Escribas mais ou menos gabaritados adoram afirmar (repetindo sempre as habituais mesmices) que a Semana e o Manifesto Pau-Brasil revolucionaram corações e mentes, valorizaram a temática nacional verde-amarela e oba-oba. Nada contra os irmãos Mário e Oswald de Andrade, Graça Aranha, Anita Malfatti, Djanira e outros menos votados. Fala-se muito na geração 45, a geração do pós-guerra, das drogas, dos Beatles, dos adoradores de Che Guevara, que surgiria anos depois, dos protestos indignados contra a guerra estúpida da Indochina e tal. É hora de reflexões sobre a geração 64.

Na crista da guerra-fria, quando a Humanidade julgava que o início das hostilidades aconteceria a qualquer momento, como hoje se pensa em relação ao Iraque, brotaram ditaduras como cogumelos, na Indonésia, onde os comunistas atrevidos e debochados ameaçavam tomar o poder pelas urnas, sendo necessário um banho de sangue para restabelecer a boa moral ocidental e cristã a juízo da CIA e quejandos, na Argélia e principalmente em nossa sofrida América Latina. O Uruguai logo deixaria de ser a Suíça da linha debaixo do Equador, dominado por um bando de “gorilas”, apesar da resistência dos “montoneros”. Idem, idem na Bolívia, Argentina (no Paraguai perpetuava-se a ditadura Stressner), no Chile e no Brasil. Políticos carreiristas e sem nenhum decoro, aliados a militares golpistas, com mania de salvadores da pátria, lubrificados por doações “humanitárias” de multinacionais e da “elite” industrial de São Paulo, se trataram de inviabilizar e derrubar um governo civil e democrático, sem considerar que João Goulart estava praticamente no fim do seu mandato e que em 65 o povo seria convocado às urnas, provavelmente para decidir entre JK e o corvo Carlos Lacerda.

O figurino, os métodos boçais, a violência contra a ordem jurídica, as prisões em massa, as cassações, a censura foram entronizados no altar das ditaduras. Tudo bem orientado pelos estrategistas do tio Sam. Partidos políticos extintos por decreto, sindicatos sob intervenção federal e policial (menos os apelegados, dirigidos por profissionais da bajulação), os universitários rebaixados ao nível de inimigos do regime. Para piorar, brotava em toda parte a fauna dos aproveitadores e “democratas” que se esmeravam em rapapés e atos de servilismo explícito diante dos militares todo-poderosos. Abocanhavam cargos e funções, verbas e mordomias, chegando ao extremo da degradação agindo como dedo-duros. Mandavam inocentes (e alguns “contra-revolucionários”) para as salas de tortura.

É certo que havia espíritos rebeldes tentando reagir. Sonhando com o restabelecimento do estado de direito ainda que pela via suicida da luta armada. Mas estes pagavam com a própria vida: Paulo Stuart Wright, que tinha formação evangélica e aderiu à Ação Popular; os estudantes de Apucarana Antônio Três Reis Oliveira e José Idésio Brianési ligaram-se à Ação Libertadora Nacional de Carlos Marighela e foram metralhados em São Paulo; o major Joaquim Pires Cervera; o sargento Albery Vieira dos Santos e outros. Já não se fala nos milhares de exilados (jovens na maioria) e nos que responderam a processos degradantes no júri militar ou foram arbitrariamente presos. O médico Osvaldo Alves, de Mandaguari, enlouqueceu de tanto apanhar.

Coação e arbítrio

O anticomunismo justificava tudo e os agentes da repressão, muito bem pagos, deliciavam-se com a prisão de membros do partidão, trabalhistas, nacionalistas e de inconformados com o clima dominante. Implantou-se a verdade oficial, onipotente e onipresente. Nas livrarias, além de velhos títulos sobre a revolução francesa e as teses de Marx e Engels o que se via era pornografia, livros esotéricos e de auto-ajuda. Harold Robins liderava o pelotão dos autores estrangeiros que cheiravam a esperma, disputando espaço nas prateleiras com Engraçadinha, de Nelson Rodrigues, Eu e o Governador, de Cassandra Rios e A Vaca de Nariz Sutil, de Campos de Carvalho, para citar apenas alguns. Jornalistas consagrados caíram nas malhas da Lei de Segurança Nacional e foram proscritos: Otávio Malta, Flávio Tavares, João Pinheiro Neto, Gondim da Fonseca. No Paraná não foram poucos os desempregados por motivos ideológicos e os que sentaram-se no banco dos réus, no infamante “IPM da Última Hora”.

É verdade que nesse período negro surgiram edições memoráveis: Noel Nascimento devassou a tragédia do Contestado, Valmor Marcelino jamais parou a sua produção “subversiva”, Domingos Pellegrini despontando em Londrina com histórias de pés-vermelhos. Algumas vozes de protesto e nada mais. No plano nacional a resistência heróica do editor Ênio Silveira, lançando livros e mais livros que a ditadura via com repugnância, destacando-se A Colônia Cecília (uma experiência anarquista), do paranaense Newton Stadler de Souza, Cangaceiros e Fanáticos, de Ruy Facó e outros. O presidente do Sindicato dos Artistas de São Paulo, Juca de Oliveira, tentava liberar textos teatrais e impedir a prisão de “subversivos” famosos como Maria de la Costa, Nara Leão e Plínio Marcos. Era a época do “Brasil, ame-o ou deixe-o” e de composições alienadas como “Pra frente Brasil”, hino oficial da seleção brasileira na Copa de 1970. Na televisão pontificavam os canalhas tipo Flávio Cavalcanti e Sílvio Santos (o primeiro já era e Sílvio aí está destilando seu veneno a cada dia). No teatro, autores estrangeiros pontificavam, repetindo-se até a exaustão as velhas tragédias gregas e peças como A Morte do Caixeiro Viajante, Tartufo, Galileu Galilei, etc. Poucos autores nacionais conseguiram furar o bloqueio da censura.

Vandré e Elis

A patota de esquerda, os universitários e os intelectuais curtiam o Para não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré. Um grito de protesto que eletrizava o País. E Vandré foi preso e torturado até virar um zumbi. Dezenas de composições eram censuradas, mas, num cochilo “imperdoável” do regime, Elis Regina conseguiu gravar uma canção inesquecível, O Bêbado e o Equilibrista, com uma interpretação primorosa, que expressava os sentimentos de muita gente no Brasil. Peças de Valmor Marcelino, José Maria dos Santos e de Oracy Gemba não escaparam da tesoura. Gemba chegou a ser preso e só não foi torturado porque teve uma crise renal em pleno interrogatório policial. Euclides de Souza (o Dadá) homiziou-se na Amazônia para não responder sobre suas traquinagens no CPC da UNE, que tinha agueridos guerrilheiros culturais em Curitiba. O teatro de bonecos entrou em recesso, substituído pela “Banda Polaca” de Anfrísio Siqueira e outras alienações da moda. Tempos difíceis enfrentados pela geração de 64 e o que aí está dito é apenas um esboço de algo que precisa ser contado em prosa e verso. Com urgência.

Milton Ivan Heller

é jornalista.

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