A (des)necessária poesia

O que é, verdadeiramente, a poesia? Inúmeras vezes tenho feito a mim mesmo esta pergunta, à primeira vista simples e banal, e vezes inúmeras tenho chegado à conclusão melancólica de que a resposta se perde num oceano de conjecturas translúcidas e vagas, de hipóteses meramente abstratas, sem um fundamento sólido, sem uma base concreta.

Criador de poesia, muito embora, nem por isso a resposta me surge mais nítida, mais definida, mais precisa à flor das águas sempre turvas e misteriosas do fluxo poético.

Enigma intrincado, com uma face de esfinge que a cada instante parece solicitar que a decifremos, não serei eu quem tenha a pretensão estulta de resolvê-lo, de uma vez por todas. Irei limitar-me, quando muito, a tentar fazer um pouco de luz sobre as sombras que vestem os seus contornos de deusa mitológica que, se poucos possuem, muitos menos entendem. Ainda que de modo parcial.

O que é, pois, a poesia? Quais as suas coordenadas? Quais os seus parâmetros? Qual a sua natureza? Qual a sua essência?

Começo por lembrar uma colocação até certo ponto humorística de Jean Cocteau: “A poesia é necessária? Certamente. Muito necessária. Só que eu não sei para quê”. Demos um desconto no poeta francês, sempre preocupado em formular um bon mot.

Começarei por dizer, de modo heterodoxo, o que a poesia não é. Não é, evidentemente, equação algébrica verbal que se resolva com a aplicação pura e simples de certas e determinadas fórmulas, tomando por base certos e determinados princípios; não é elemento químico, cujo peso atômico, massa específica e densidade sejam susceptíveis de ser determinados, com métodos científicos; como não é algo material, que possa ser examinado e dissecado num laboratório, com pinças e lupas; tampouco é fruto maduro que, posto na boca, contenta logo o paladar.

A poesia é mais, muito mais. É concepção titânica, é gêmea bíblica que transcende em muito as fronteiras do real e do humano. Pois que o real o humano são, na sua intrínseca realidade e humanidade, transitórios. Irremediavelmente transitórios. A trajetória da poesia, contudo, é animada de um sentido de permanência, de uma iniludível ânsia de infinito, de eternidade. Sendo a sua tessitura construída de palavras, estas adquirem uma importância decisiva, capital. Transmudam-se em valores, assumem a grandeza dos símbolos, realizando mitos e concretizando o irreal, cristalizando o abstrato, numa constante e prodigiosa dialética que a tudo subjuga, avassaladoramente. Deixem de ser, enfim, estáticas moléculas de dicionário, para se revestirem de um dinamismo criador de sonho, ritmo e beleza. Para se tornarem, como pretende Heidegger, a “fundação integral do ser”.

Em síntese, a poesia nada mais é que uma visão, transfigurada e transfiguradora, do homem e do mundo, real ou onírico, uma comunhão com o sentido último da existência. Vai, por conseguinte, muito além do que a linguagem dos sentidos nos mostra. Reduz, traduz essa linguagem numa linguagem nova que, de certo modo, transforma o mundo existente naquele “mundo como representação” a que se referiu Shopenhauer. Numa linguagem depurada. Numa linguagem purificada. Numa linguagem fecundada sempre por um apelo irresistível a uma série de valores espirituais que cada vez são mais raros, no mundo conturbado em que vivemos – a esperança, a fé, a compreensão, o amor, a fraternidade entre todos os homens.

Criando essa linguagem, uma das missões essenciais dos poetas estará finda. Mas, ainda mesmo que a não consigam criar, em toda a plenitude, sempre lhes restará, como consolo, o grito angustiado de Bertold Brecht:

“Ai de nós,

querendo construir os alicerces

do sentimento da fraternidade,

sem podermos nós mesmos ser fraternos…

Porém tu, quando enfim for natural

que o homem seja o salvador do homem,

pensa em nós. Pensa em nós com piedade..#

Esculpidas em ouro, como epitáfio para todos os poetas, que outras palavras poderiam ser mais expressivas e mais belas?

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