50 anos sem Getúlio

Dava até pra perguntar aos de mais de 50 anos onde estava no dia em que souberam do suicídio de Getúlio Vargas: 24 de agosto de 1954.

Quanto a mim, piloto de táxi-aéreo, havia pernoitado em Santa Isabel do Ivaí, tinha amanhecido com uma pontinha de dor-de-cabeça. Um jipe me levou com os três passageiros até a pista de pouso.

Olhei para o avião PP-APC velho conhecido e amigo, sabia que aquele avião gostava de mim, nunca havia me aprontado safadezas mecânicas e eu retribuía jamais o colocando em situações de risco, voando razante, no mau tempo ou nos instrumentos. Pilotos sabem que os aviões têm personalidade, gostam de ser tratados com mãos de seda, carinho e respeito. Quando o piloto não os leva bem, intizicam, implicam, derrapam nas curvas, adquirem tendências, estolam no pouso, pigarreiam com o motor, enfim, dão o troco.

Não era o caso do APC comigo, nós nos dávamos muito bem. Acomodei-me no assento de pilotagem – já tinha há muito tempo o formato anatômico de minha bunda – é por ali que o piloto e o motorista têm a sensação dos limites da velocidade, repararam? passei o cinto, os passageiros entraram, dois atrás e um na frente, ao meu lado. Dei partida e fui taxiando até a cabeceira da pista, terra batida, com um pequeno declive que ajudava a ganhar velocidade para a decolagem. Tirei o APC do chão, recolhi o trem de pouso e fui ganhando altura. Com aquela dorzinha de cabeça eu não queria conversar com os passageiros e usei um macete: coloquei os fones e, ao acaso, sintonizei uma emissora broadcasting.

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Era a Rádio Farroupilha, de Porto Alegre. O locutor esganiçava no ar: o presidente Getúlio Vargas suicidou-se esta manhã no Palácio do Catete!

O impacto da notícia me subiu pelos pés, num átimo, e me curou da dor-de-cabeça. Arranquei os fones e gritei para os passageiros “Gente! O Getúlio se matou!” joguei o som para o alto-falante da cabina. Estávamos todos cristalizados a bordo, frases curtas cortando o ar: Mas, como? Não pode ser! O que será que houve? Meu Deus do Céu, e agora?

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Ali, pilotando o Bonanza, librado em pensamento confusos, comecei a voltar no Tempo, ao Getúlio das capas dos meus cadernos escolares, os discursos de 1.º de maio e a frase-gatilho: “Trabalhadores do Brasil! Neste momento nacional …”.

Fui me lembrando do Getúlio astuto e matreiro que entre tantas, negociou com os americanos uma siderúrgica em troca do envio de uma tropa expedicionária para a Europa, abandonando o germanismo que o fez mandar Olga Benario para a Alemanha. Criou a CLT. Começara a morrer muito antes do suicídio com Carlos Lacerda “industrializando” politicamente um tiro de raspão na perna e com a morte do major-aviador Rubens Florentino Vaz, naquele atentado da rua Toneleros. As forças políticas da época não toleravam sua volta ao Poder.

Certa vez, eu estava na revista Manchete, entrevistava o guarda-costas de Getúlio Gregório Fortunato, que a Imprensa chamava de “Anjo Negro” e era “estrela verde”, de bom comportamento, na penitenciária Lemos Brito, e ele me disse: “A metade de minha pena eu devo a vocês, jornalistas. Mas, de qualquer forma, pelo muito que eu sei, não vou sair daqui vivo”. Foi profético, alguns meses depois, separando uma briga de dois detentos num corredor foi assassinado a estocadas, pelos dois briguentos que “montaram” o lance da briga.

Getúlio fazia frases como a que disse para Danton Jobim na dedicatória de um livro: Para você, Danton, meu amigo certo das horas incertas. Ou como a que falou para Oswaldo Aranha quando este lhe relatou que a situação em São Paulo estava evoluindo perigosamente: Deixa como está pra ver como é que fica.

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A carta-testamento, que não foi escrita por ele nem por Lourival Fontes, do antigo DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda e sim por uma 3.ª pessoa que ficou na sombra, era repetida insistentemente pelas rádios e jornais. Para mim, que viera da adolescência casado com a imagem de Getúlio, acabava um período da História do Brasil. Havia como que um vazio na minha cabeça.

Enquanto Getúlio saía da vida para entrar na História eu chamava a Torre Londrina pedindo instruções para o pouso onde, com carinho de pai que põe filho no berço, aterrissei o meu amigo-avião APC ….

Wilson Silva

é jornalista e escritor

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