esportes

Sobrevivente do incêndio no Flamengo, lateral faz recomeço no Corinthians

Na noite do dia 8 de fevereiro, Kennyd Lucas não estava para conversa. Seus três colegas de quarto não paravam de falar e ele queria um pouco de privacidade para conversar com a namorada por WhatsApp. A monitora que cuidava do alojamento no Ninho do Urubu apagou a luz. Ele pediu para passar a noite na sala de convivência, onde o sinal do Wi-Fi funcionava melhor. A funcionária não deixou e mandou todos irem dormir. Kennyd desobedeceu a ordem e foi mesmo assim.

O rapaz esperou que a responsável deixasse o local e saiu escondido para ter seu momento de sossego. Pegou no sono na sala e acordou no meio da madrugada com os gritos dos amigos. O alojamento estava em chamas. Ele saiu correndo para ajudar, quebrou duas janelas, mas não deu para evitar a tragédia. Dez garotos da base do Flamengo morreram no incêndio.

O acidente virou a vida do garoto de 15 anos de ponta cabeça. Ele precisou interromper os estudos, pois a escola ficava no CT rubro-negro e voltou para Cuiabá, onde morava com o pai e a avó – a mãe vive em Poconé, no interior do Mato Grosso. Em sua cidade natal, foi recebido como herói, dava entrevistas, aparecia na televisão e ao mesmo tempo ia ao psicólogo, oferecido pelo Flamengo.

O pai, Claudemir Mira, não estava gostando, pois a vida de superstar na cidade também o fazia reviver o trauma. “Ele acordava assustado no meio da noite pedindo socorro”, conta. Claudemir chegou no empresário, Marcelo Demarco, uma espécie de segundo pai de Kennyd, e pediu que ajudasse a encontrar uma solução. O agente sugeriu que o garoto fosse para o Brasilis, clube de Águas de Lindoia por onde havia treinado antes de ir para o Flamengo.

Após 17 dias no interior paulista, apareceu o convite do Corinthians para fazer teste no clube. Em três dias, em meados de abril, foi aprovado. Em seguida, matriculou-se na escola a tempo de não perder o semestre e a vida voltava a entrar no eixo.

Para o pai de Kennyd, o período entre a tragédia e o acerto com o Corinthians foi um dos mais difíceis da vida. Claudemir é caminhoneiro e, como ele diz, tem “de vender o almoço para pagar a janta”. No dia da tragédia, ele só soube o que aconteceu pelos colegas de trabalho. “Disseram que tinham morrido os garotos da base do Flamengo. Fui à loucura. Fui em outra dimensão e voltei. Enquanto não falei com meu filho não consegui fazer nada. Liguei as primeiras vezes e ele não atendeu. Foi a pior sensação possível. Não tem nem como descrever. O empresário que conseguiu contato e me disse que estava tudo bem com o Kennyd. Fiquei o dia todo ruim”, contou.

Kennyd voltou para Cuiabá e pediu ao pai para romper com o Flamengo. Dos três colegas de quarto, dois morreram. No Mato grosso, recebeu ajuda de todos. A população se mobilizou para arrecadar dinheiro para que ele comprasse roupas.

O dono da escolinha de futebol da cidade onde ele havia iniciado a carreira o chamou para treinar. Delrik Brunne contou que Kennyd estava bem e chegou a disputar uns jogos pela equipe. “Procurei não ficar perguntando da tragédia. Ele é muito maduro para a idade dele.”

Foi nessa escolinha anos atrás que Kennyd e Marcelo Demarco Filho, o filho do empresário, estreitaram amizade. Como Claudemir tinha dificuldades para acompanhar o filho, Marcelo, o pai, passou a dar uma força. No ano passado, a vida dos meninos começou a deslanchar com o convite do Brasilis. Kennyd passou quatro meses no clube do interior paulista, conheceu a namorada de uma cidade vizinha, Monte Sião, e recebeu o convite do Flamengo. O filho de Marcelo segue em Águas de Lindoia. “O Kennyd tem tudo para ser um grande jogador. Tem o estilo do Fagner, mas joga de lateral-esquerdo”, disse Demarco.

Quando surgiu o convite do Corinthians, o pai assinou uma procuração e deixou o agente responsável por tomar a decisão do acerto. Até os 15 anos, os atletas podem assinar apenas contrato de formação, com validade de 12 meses.

Kennyd vive no alojamento do clube, em uma casa próxima ao Parque São Jorge, divide o quarto com outros três garotos e recebe auxílio de R$ 700 por mês. O local conta com 46 garotos entre 14 e 17 anos e é provisório, enquanto as obras no CT Joaquim Grava para receber a base não ficam prontas.

Para ficar com o garoto, o Corinthians venceu a concorrência do São Paulo e do Palmeiras. Kennyd treina à tarde, estuda à noite e os jogos são aos sábados pela manhã. Desde que chegou, recebe tratamento igual aos demais. Ele foi avaliado por psicólogo, assistente social e orientador educacional. A comissão técnica nunca tocou no assunto da tragédia com o garoto. É algo que fica só no departamento de saúde. Kennyd tem à disposição os psicólogos para quando precisar.

No Corinthians tem surpreendido pela maturidade. É um menino extrovertido e se integrou rapidamente ao elenco. Para melhorar, marcou um gol em sua estreia, mas se machucou em seguida. A volta será em breve. Nessa idade, os técnicos costumam dizer que os meninos são de borracha: levam a pancada e logo se recuperam.

Voltar ao topo