Locais que receberam Brasil de 50 sobrevivem ao tempo

Remodelado para a Copa, o Maracanã é o símbolo maior do Mundial de 1950, para o qual foi construído, e da catástrofe brasileira frente ao Uruguai. Não é o único. Apesar de ter passado por profundas transformações urbanísticas de lá para cá, o Rio guarda outras instalações que contam a trajetória da seleção que deixou escapar, há 64 anos, a taça Jules Rimet.

São Januário, até então o maior estádio carioca, foi a última concentração dos “onze feiticeiros” – Barbosa, Augusto, Juvenal, Bauer, Danilo, Bigode, Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico – antes do 16 de julho fatídico. O estádio do Vasco não tem mais os alojamentos onde ficaram, que foi descaracterizado nas décadas seguintes e hoje está em reformas. Mas o restaurante que lhes servia, inaugurado em 1927, mantém a cara vintage.

“Guardo lembranças vivas daquele tempo, eles treinando e fazendo as refeições no restaurante. Eu vinha à concentração diariamente. Tinha 8 anos e meu pai, Ismael de Souza, era vice-presidente do Vasco e tinha amizade com o Augusto e o Barbosa, que eram do Vasco (assim como Ademir, Chico e Danilo Alvim)”, rememora Nelson de Souza, que tem o título de grande benemérito do clube.

A proximidade com os heróis da seleção, dados como campeões por todo o País ao longo da competição, era motivo de inveja dos amiguinhos do pequeno Nelson. “Naquele tempo, era tudo mais solto. A gente podia conversar com os jogadores. Eram ídolos, faziam gol de qualquer jeito, davam goleadas, por isso o clima de ‘já ganhou’, que atrapalhou tudo.”

A instalação do time em São Januário, quatro dias antes da final da Copa do Mundo, foi apontada como motivo da derrota. Como se acreditava que nada poderia nos tirar o título, aproximar os jogadores do clima da decisão, que tomava conta da cidade mas não chegava ao então deserto bairro de São Conrado, onde eles estavam antes, parecia a melhor decisão a se tomar.

Era justamente o contrário. Políticos queriam aproveitar para colar sua imagem à fama dos craques. Curiosos e caçadores de autógrafos não respeitavam os momentos de repouso. “Aquilo virou um inferno. Perdemos a Copa duas vezes, ali e no Maracanã”, diria o atacante Zizinho sobre o trauma.

A facilidade de entrar e sair do novo pouso, que não existia na Casa dos Arcos, localizada no meio de uma estrada deserta perdida depois do Leblon, era um convite à desconcentração (viraram folclore as escapadas para encontros amorosos).

A casa, à qual se chegava por um único caminho, a Avenida Niemeyer, fora emprestada à Confederação Brasileira de Desportos (atual CBF) pelo empresário Drault Ernanny de Mello e Silva (1905-2002), amigo do prefeito, general Ângelo Mendes de Morais.

Drault Ernanny Filho e Teresa Ernanny, filhos do dono, foram crianças privilegiadas. Com 13 e 7 anos, não moravam na mansão, comprada pelo pai do diretor teatral Procópio Ferreira nos anos 40 como forma de investimento (a família vivia num casarão, em Copacabana), mas, durante a Copa, puderam chegar perto dos ídolos.

“Via os jogadores batendo bola no jardim, fazendo embaixadinha. Sentavam no muro, bem alto, e jogavam amêndoas nos poucos carros que passavam. A uns 100 metros havia um ajuntamento de ciganas, e elas ficavam se oferecendo para ler as mãos deles”, lembra Ernanny Filho.

A espaçosa piscina da casa era usada para lazer. Alguns jogadores não sabiam nadar, ele lembra; então, a parte mais funda era cercada, para evitar afogamentos. “Eles achavam graça quando ia uma criança, pois não podiam sair de lá. O Flávio Costa (treinador) impunha um regime semifascista. Eu levava drops e ficava conversando, achava que entendia de futebol.”

Segundo Teresa, a família ficou tão triste com a derrota, que o assunto virou tabu. “Tínhamos orgulho de a seleção estar na nossa casa. Vi o jogo de camarote e saí do Maracanã de luto. Meu pai tinha certeza de que a mudança atrapalhou muito, que se eles tivessem ficado na casa até o fim, o Brasil teria sido campeão.”

Nos dias que antecederam a partida crucial, a Celeste ficara quieta no Hotel Paissandu, hoje Paissandu Augusto’s, que resiste no Flamengo. Ocupou dois andares. Os banheiros foram testemunhas de um episódio curioso, contado no livro “O Jogo Bruto das Copas do Mundo”, do jornalista Teixeira Heizer: revoltado ao ver no jornal O Mundo a imagem da seleção brasileira com a manchete “Estes são os campeões do mundo”, o capitão da seleção uruguaia, Obdulio Varela, comprou vários exemplares e levou para seus companheiros urinarem em cima da foto.

“Os uruguaios fizeram festa, subiram nas mesas, jogaram comida para o alto. Colocaram a taça Jules Rimet na janela do hotel, para ser admirada”, diz o atual dono, Raul Antônio Mattoso. Só recentemente ele resolveu tirar proveito da fama do hotel: colocou uma placa indicando que os algozes do Maracanazo saíram dali para calar o Brasil.