Havelange, 87 anos, ainda dá palpites

Durante 24 anos o brasileiro João Havelange foi o homem mais importante e responsável por comandar uma paixão mundial: o futebol. Aos 87 anos, ele fez um balanço de sua administração à frente da FIFA, a considerou boa, mas disse ter ficado impotente ante a uma única frustração. O dirigente queria através do futebol amenizar, ou quem sabe, resolver o conflito entre Israel e a Palestina.

Havelange ainda repugnou as sucessivas tentativas de o governo brasileiro interferir na administração dos clubes. Considerou um erro a intenção de se criar as Ligas de futebol no país e classificou de antiquada a idéia de transformar os times em empresas, principalmente depois dos problemas de vários clubes europeus..

Paraná-Online

– À frente da FIFA, o senhor consolidou o futebol no mundo e o fez prosperar. A prova disto é que a entidade possui mais países filiados do que a Organização das Nações Unidas. Mas, hoje, é possível verificar no futebol europeu um certo abalo nesta prosperidade, como foi a falência da Fiorentina, equipe italiana. Qual a análise que o senhor faz deste novo panorama?

João Havelange

– Das suas palavras eu retiro uma: o abalo. O abalo que nós sofremos no dia 11 de setembro repercutiu no mundo inteiro, com a queda das duas torres do World Trade Center, em Nova York. E isso prejudicou não só o futebol mas muitos outros setores. Mas o futebol é uma paixão. Ele trabalha no sentido de trazer alegria, tranqüilidade e é assim que devemos vê-lo. Um erro ou outro não é o que deva ser apontado como o culpado. E não é porque uma pessoa possa ter cometido um erro que o culpado é o futebol. O futebol continua o mesmo com a mesma intensidade. Portanto, o futebol não está morto, ele vive e cada vez sairá das cinzas, se aí estiver. E, se não estiver, ele também demonstrará o quanto se organiza rapidamente.

Paraná-Online

– A CBF elaborou um novo calendário para o futebol brasileiro em 2003. O senhor acredita que esta nova programação representou algum tipo de avanço?

Havelange

– Teve um avanço, está muito bom, e a CBF tem trabalhado para isso. Mas só procuram criticar. E porque não batem palmas quando foi pentacampeã do mundo e ninguém acreditava. Não se pode querer matar um clube ou uma federação.

Paraná-Online

– A quê o senhor credita o fato de o presidente da CBF, Ricardo Texeira, ter feito concessões como conversar com as Ligas e, como dizem, ter dado a palavra de que oficializaria sua existência? E quanto ao calendário quadrienal do futebol brasileiro, que previa competições para quatro anos e, praticamente, foi jogado no lixo?

Havelange

-Jogado no lixo não, porque fez-se em cima da perna. Depois de analisado, viu que não dava em nada.

Paraná-Online

– O senhor identificou algum tipo de oportunismo na interferência do governo para a elaboração do calendário quadrienal?

Havelange

-Não sei se oportunista, mas acabou a eleição e ninguém fala mais nisso. E não vejo o porquê se meter sempre no futebol. Por que é que não se fala na natação, no basquete e no voleibol? É só o futebol porque enche os estádios. No basquete, mil pessoas vão aos estádios. É só isso. Então, veja o que é o futebol. Sendo assim, vamos organizar o País, vamos organizar o esporte e não especificamente o futebol, que não faz mal a ninguém e só dá alegrias.

Paraná-Online

– O senhor foi o maior defensor da Copa do Mundo da Coréia e Japão. Qual análise que faz da competição? Ficou satisfeito?

Havelange

– Trabalhei por 24 anos na FIFA e esperei até a Copa do Mundo Coréia a Japão. A decisão de fazer a Copa em dois países foi porque havia uma luta interna e não se chegaria a lugar nenhum. Lembro que no dia da votação, a discussão da sede era o ponto 11. Na madrugada, fiz um documento e, quando chegou ao ponto 11, antes de colocar em votação, pedi para fazer uma exposição. Ao terminar, todos me aplaudiram e votaram a favor. Aí esperei por quatro anos para ver o sucesso e foi. A organização, os acessos aos estádios, a segurança, a disciplina, o estacionamento, a atenção, tudo perfeito. E isto é uma das coisas que me orgulho de todo o tempo de administração. Saí de dois continentes, a Europa e América e fomos para a Ásia, o que abriu um leque de opções para todos.

Paraná-Online

– Por todos os problemas que o Brasil enfrenta, quando que o país vai ter condição de realizar uma Copa do Mundo?

Havelange

– Veja bem, dei uma idéia e fui maltratado terrivelmente. Quando vamos a um local de massa, de quantitativo forte, duas coisas são muito importantes. O acesso ao Maracanã não existe, o estacionamento não existe, a segurança não vale nada. Ou isso muda, ou então não se faz mais jogo lá. Senão, todo dia vamos ter problemas. Nós precisamos evoluir, modificar nosso pensamentos e nos atualizarmos. A Inglaterra está destruindo Wembley, que tem 100 anos, para fazer um novo estádio de 80 mil pessoas e mais perfeito. Aqui não se pode fazer isso. É uma desonra. Vou lhe fazer um pergunta: quantas vezes o senhor já foi ao Maracanã? Se um dia, por uma razão qualquer, cair um pedaço da arquibancada lá de cima, cá em baixo, não entra uma ambulância lá dentro. Agora, estão tentando fazer umas reformas que não levam a nada. Pintar, botar uma cadeira amarela, uma verde, outra azul, o senhor me perdoe mas não é isso. Por exemplo, nós vamos ter a Copa do Mundo na Alemanha, em 2006. Uma das sedes escolhidas foi Munique. Eles queriam renovar o estádio olímpico de 72, mas o Franz Beckenbauer, como vice-presidente da Federação Alemã e presidente do Bayern, disse que não aceitava. Vão fazer um estádio novo só para o futebol. E o outro pode deixar lá. Os estádios mudaram completamente e hoje são mais leves. Veja que no Maracanã para ir ao quarto, quinto e sexto andar há somente três elevadores. Outro exemplo, no século XIX para ir de Paris a Marselha se levava 27 horas de trem, hoje, é possível ir em três horas e meia, de TGV. Então, porque tem TGV vamos ficar com a Maria Fumaça? Pelo amor de Deus!

Paraná-Online

– Após passar 24 anos como o dirigente máximo do futebol Mundial, o senhor assumiria algum outro cargo, seja esportivo ou político?

Havelange

– Estou com 87 anos de idade e não quero ser senador, ministro, deputado, presidente da CBF ou mesmo voltar à FIFA. Tenho poucos anos de vida e peço que me dêem a liberdade de estar com a minha família para usufruir de meus amigos para poder fazer aquilo que ainda não fiz, por causa de tantas obrigações. Não quero e não aceito absolutamente nada. Estou livre e acho que cumpri a minha missão. No esporte , bem ou mal, o Brasil teve três copas do Mundo. Bem ou mal, na FIFA, acho que houve uma evolução no mundo do futebol. Pode procurar em todos os outros esportes que nada caminhou como o futebol.

Paraná-Online

– Ficou alguma frustração?

Havelange

– Uma. Que foi um pedido feito pelo então vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore, quando da Copa do Mundo de 1994. Em sua suíte, ele me disse: quero lhe fazer um pedido. Respondi que o estava ouvindo. Então, ele me falou que havia um problema no mundo em que a política, administração, os governos, o setor financeiro, as empresas e o setor diplomático não resolveram. E, vendo o futebol, que ele não conhecia, uma competição onde todo mundo se entrelaça e é feliz, dizia ele, que achava que pelo futebol poderia se chegar a uma solução sobre a questão Palestina e Israel. Respondi a ele: eu faço esporte e não política. Pensei que ele fosse desmaiar. Ficou apenas me olhando. Aí eu parei e disse, agora lhe entendi. Vou fazer o seguinte, começarei um trabalho para ver se faço um jogo entre a seleção de Israel, que nós prepararemos na FIFA, e a seleção da Palestina, que também será preparada. O confronto seria em Nova Iorque, na sede da ONU, com todos os grandes presidentes do mundo para assistir a esse jogo de confraternização. Comecei um trabalho e os dois aceitaram. Tive, em 1997, um encontro com os israelenses, de acordo. Quando ia me encontrar com o Arafat (Yasser, líder palestino), em Gaza, houve um atentado a um ônibus de alemães, que matou 51, e a segurança internacional me impediu de ir. O tempo passou e pedi permissão ao Rei da Jordânia para me reunir lá com o Arafat e ele me disse que sim. Depois, quando devia me reunir, o Arafat foi chamado pelo governo americano a Camp David (residência de campo do presidente dos Estados Unidos) e novamente o encontro não aconteceu. O tempo correu e estive com o príncipe Faiçal, que era o irmão do rei Fahd, da Arábia Saudita. Perguntei se podia me reunir com Arafat em Riad, capital árabe, onde eu teria mais tranqüilidade. Ele disse que ia verificar e voltar a falar comigo. Pouco tempo depois, deixei a FIFA e ele faleceu, com um problema no coração, e assim essa reunião não se fez. É a minha única tristeza. Tenho a impressão de que muito do que está acontecendo podia ser evitado. Mas, o que pude fazer eu fiz, mas nem sempre é possível fazer tudo.

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