Dois sem teto perdidos no Beira-Rio

?Libera?. Até ouvir esta frase, que autorizou nossa entrada no gramado do Beira-Rio, estávamos prestes a estar no estádio da final da Copa Libertadores da América e não ver a partida entre Internacional e São Paulo. Eram tantos jornalistas que não havia onde acomodá-los. E, aproveitando as brechas da segurança e da organização do evento, paramos onde toda a imprensa gostaria de estar – e somente quem detinha direitos de transmissão podia, em tese, ficar.

A ordem que recebemos era simples: que acompanhássemos o jogo, notássemos detalhes, peculiaridades e reações de jogadores, técnicos e torcedores, para uma matéria de ambiente da final (esta, no caso). Chegamos ao Beira-Rio às 20h10, uma hora e cinqüenta minutos antes do início da decisão. Filas circundavam o estádio, o clima era de tensão. Os torcedores queriam entrar de qualquer jeito, quem quisesse ?furar? as filas corria o risco de ser agredido, a Brigada Militar estava pronta para agir e ameaçava a todos com a cavalaria.

Quando chegamos à área de imprensa, não havia onde se posicionar. Recebemos coletes amarelos e crachás com a inscrição ?campo?. ?Vocês devolvem as credenciais??, perguntou o responsável. Dissemos que sim, e pegamos nosso material sem comprovar quem éramos. E sem mesmo apresentar qualquer carteira funcional ou de associação de classe.

Nosso objetivo era achar um canto para ligar o laptop e acompanhar a partida. Não deu – as já poucas cabines estavam lotadas. A reservada para os jornais ficara cheia cinco horas antes da partida. Começamos a girar o estádio em busca de um porto seguro. Cogitamos, em combinação com parte da equipe da ESPN Brasil, ir para a ?faixa de Gaza?, o espaço entre as torcidas de São Paulo e Inter. A desastrada decisão não se consumou, pois a Brigada pedira tempo para tentar nos colocar lá.

Nisso, um dos produtores da ESPN Brasil virou para a gente e perguntou: ?Por que vocês não vão para o campo??. Não pensáramos nesta hipótese – na verdade, tínhamos certeza que seríamos barrados. Como fomos na entrada principal. Mas um segurança falou que deveríamos ir no portão 7. E por que não ir?

Perdigão, muito participativo.

Quase não fomos. A entrada era estranha, alguns queriam derrubar a grade e invadir, no mesmo tempo em que um torcedor fazia embaixadas com uma bola imaginária. Mas um funcionário da RBS (Rede Brasil Sul) foi entrando e nós o seguimos. Faltava um corredor, uma ponte e lá estava o gramado. Chegamos em outra barreira de seguranças, e foi lá que ouvimos a palavra definitiva. ?Libera?.

Recebemos uma distinção que poucos receberam. Tivemos o privilégio de acompanhar o jogo de muito perto. Atrás do gol de fundos do Beira-Rio, mais precisamente – onde Tinga fez o gol do título do Inter. Ao lado da equipe da famosa TV árabe Al-Jazeera, que veicula os pronunciamentos de Osama bin Laden. Antes da partida, já se notava a eletricidade da torcida, que fora ao estádio para comemorar um título que lhes escapara em 1980, e que se tornara o principal alvo das gozações dos gremistas.

Os sinalizadores, que fizeram o jogo ser interrompido no primeiro tempo, além da fumaça espessa, geravam um cheiro desagradável, que vinha em cima dos jogadores. E da gente. O volante Fabinho – acompanhado de Léo e Márcio Mossoró -, expulso no primeiro jogo, estava escondido no banco de reservas (onde não poderia estar) e foi pedir à organizada Camisa 12 para que parasse com os fogos de artifício.

Em campo, vinte e dois jogadores, o trio de arbitragem e dois ?trabalhos?. Num deles, velas e a imagem de Santo Antônio. No outro, um saci (o mascote do Inter) parecia rogar uma praga aos são-paulinos. Rogério Ceni não quis tocar na obra, mas pediu para o preparador de goleiros do Tricolor tirar pelo menos o saci de trás do gol. Não adiantou, pois foi ali que ele sofreu o segundo tento colorado.

Fora de campo, um espetáculo à parte de Perdigão. Nem um grupo de ?cheerleaders?, aquelas do futebol americano, seria tão eficiente quanto o baixinho meio-campista, ex-Paraná Clube e Atlético. Ele dava três pulos no aquecimento e saía para levantar a torcida. Corria como um maluco para ajudar Abel Braga a dar orientações. E, lá pelos 42 do segundo tempo, saiu do banco (sem qualquer autorização da arbitragem) e deu uma volta no estádio para fazer a galera colorada gritar sem parar até o apito final de Horácio Elizondo.

Quando o apito veio, uma onda de frenesi tomou conta do Beira-Rio, de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul. Os jogadores foram festejar com Abel, que deixava uma sina de vice que o machucava muito – não foi à toa o choro incontido que vimos no meio do campo. Enquanto isso, os são-paulinos encaravam o gosto amargo da derrota. Carlinhos Neves, o preparador físico tricolor, confidenciou: ?Não poderíamos ter tomado dois gols como estes?. Lugano reclamava, quase vinte minutos depois do final da partida, que Elizondo não dera os acréscimos anunciados. Leandro voltava do exame antidoping chorando copiosamente. Rogério Ceni ficava calado, sem mover um músculo, mas com um semblante que não escondia o sentimento de ?culpa? pela falha no primeiro gol do jogo.

Do outro lado, Perdigão foi fazer festa com a torcida, tentou pular a placa e se esparramou no chão. Rafael Sóbis ?roubou? a bandeira de um dirigente e saiu pelo estádio, levando a torcida ao delírio. Os jogadores evangélicos se reuniam para agradecer a glória divina. Vendo tudo isso, um personagem da conquista colorada – o paranaense Leomir de Souza, auxiliar de Abel Braga, e que perdeu um pênalti na decisão contra o Olímpia, na semifinal da Libertadores de 89. ?Eu estava com isso engasgado na garganta. Todo mundo queria falar comigo na semana do jogo com o Libertad, e eu me escondi. Sabia que iam lembrar disso. Agora, conseguimos escrever a história com o final dos nossos sonhos?, desabafou.

Enquanto éramos testemunhas da festa do Inter, grande parte da imprensa ficava parada, esperando autorização para entrar no campo – exatamente na barreira em que recebemos o ?ibera?. Para nós, havia tempo de conversar com Evandro Motta, o motivador do Inter, parceiro fiel do técnico colorado. ?Nunca vi um grupo tão empenhado em conquistar um título. E eles mereciam muito?, contava ele, ao som do Tema da Vitória de Ayrton Senna. ?Eles entravam em campo ouvindo esta música, a gente colocava no túnel, à beira do campo. E quando saíam do gramado, esperávamos eles no vestiário com o mesmo tema. Hoje, eles ouviram junto com a torcida?, completou Evandro Motta.

De tantas cenas vistas de muito perto, algumas foram inesquecíveis. A incrível festa de fogos promovida na hora da taça (um fotógrafo tentou acompanhar a volta olímpica e levou um tombo daqueles, quase sendo atropelado pelos jogadores do Inter). O presidente Fernando Carvalho, com olheiras profundas de quem não dormiu nas noites anteriores, mantendo a serenidade para amparar os veteranos conselheiros que se debulhavam em lágrimas. A atitude de Fernandão, que chamou os companheiros no meio da festa para os cumprimentos aos jogadores do São Paulo. A touca de saci com as cores da Colômbia do atacante Rentería. E, claro, Perdigão posando com um passaporte e dizendo que não cortaria o cabelo para ser confundido com Ronaldinho no Japão. Na verdade, o baixinho recebeu o ?perdão? da promessa do próprio presidente colorado.

Ao sair do campo, ainda com muita festa, chegamos a duas conclusões. A primeira: tínhamos que contar esta história. A segunda: se dois jornalistas penetraram com tal facilidade em um local pretensamente proibido, como será na Copa de 2014?

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