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Lixo da discórdia

Fechamento de usina em Campo Magro muda reciclagem do lixo em Curitiba

O fim das atividades do Instituto Pró-Cidadania de Curitiba (IPCC), anunciado no mês passado, também encerrou algumas atividades importantes ao município. Uma delas era a gestão de até 50% do lixo reciclável coletado na capital (cerca de 800 toneladas por mês), na Unidade de Valorização de Recicláveis (UVR), em Campo Magro. A usina era gerenciada pelo IPCC, com recursos da prefeitura curitibana. Com seu fechamento, o lixo que era mandado para lá precisou de novo destino.

Estes recicláveis estão sendo distribuídos nas 22 associações de coletores de materiais recicláveis espalhados na cidade, pertencentes ao projeto Eco Cidadão, da Prefeitura de Curitiba, que já recebiam os outros 50%. Mas o que está sendo um aumento de renda para uns, está dando prejuízo e dor de cabeça para outros.

Geomar João Chaves Filho, presidente do Eco Cidadão da Vila Pantanal, no Alto Boqueirão, diz que não tem do que reclamar. Sua associação tem absorvido com folga a demanda maior. “Estamos até dispensando o pessoal mais cedo, porque falta material para trabalhar”, diz Geomar, preparado para receber ainda mais recicláveis, se for necessário. Em alguns outros barracões procurados pela reportagem, o “cenário” era o mesmo. No entanto, a maioria recebe apenas o lixo residencial coletado pelos caminhões do “Separe”, que é fácil de triar e vender.

Muito “caco”

Mas do outro lado da cidade, na CIC, a realidade é outra. O barracão da Associação Novo Amanhecer, por exemplo, tem recebido caminhões do Câmbio Verde, que é um programa social da prefeitura onde pessoas de baixa renda podem trocar lixo reciclável por comida. No entanto, é um lixo que vem muito sujo, misturado com produtos inservíveis para reciclagem, ou seja, de baixa ou nenhuma comercialização. Antes, os caminhões do Câmbio Verde levavam todo este material à UVR.

“Vem muito caco, tudo muito misturado, sujo, coisas difíceis de serem classificadas, produtos que ninguém quer comprar. Vem muito vidro quebrado, machucamos muito as mãos. Perdemos muito tempo manejando isto, organizando, limpando os materiais e o pátio e não sobra tempo para classificar os recicláveis que valem mais dinheiro. Estamos até tendo prejuízo, pois estamos vendendo menos. O lixo que vinha antes, que é este que é coletado na porta da casa das pessoas, é muito mais fácil de classificar e muito mais rentável”, explica Paulo Pequeno, presidente da Associação Novo Amanhecer.

Paulo mostrou a pilha de televisores e monitores de computadores velhos bem na entrada do pátio. “O plástico externo e as placas até que têm saída. Já os tubos e vidros dos televisores não tem serventia. Ninguém quer comprá-los e a prefeitura não recolhe de volta. Não faço ideia do que vou fazer com eles. A pilha está aumentando. E tenho receio de reclamar à prefeitura e não trazerem mais caminhões pra cá, ou trazerem apenas pouca coisa, caminhões só com metade da carga”, teme. Num só dia, ele recebe cerca de oito monitores e televisores.

Em outro barracão, no Boqueirão, o responsável confirma que está dando conta do trabalho, porém também recebe o Câmbio Verde e relata que é um lixo muito difícil de lidar. No máximo, 30% é reaproveitado.

Foto: Felipe Rosa.
Foto: Felipe Rosa.

Prefeitura não sabia do problema

Edelcio dos Reis, diretor do Departamento de Limpeza, da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, explicou por que o lixo do Câmbio Verde vem tão sujo e misturado. “Um dos objetivos do projeto é melhorar a alimentação das famílias de baixa renda. Elas trocam material reciclável por comida. Mas, para aumentar a quantidade de materiais coletados, muitos saem às ruas em busca deles. Vão a terrenos baldios, por exemplo, e de lá retiram coisas velhas, que já estão ali há algum tempo, sujas de terra, quebradas. Pegam móveis e eletrônicos que as pessoas dispensam em frente às residências, entre outros. Por isto é um lixo de valor comercial menor”.

Ele reconhece que o trabalho dos recicladores era mais fácil antes, já que o lixo vindo das residências possui muito papel, papelão, garrafas pet e outros plásticos, entre outros produtos com alto valor de venda. Já vem mais ou menos classificado e limpo, mais fácil de manusear, separar e reciclar.

Apesar de saber que o lixo coletado pelos caminhões do Câmbio Verde é de menor valor comercial, Edelcio afirmou que não sabia do problema dos materiais não comercializáveis, como por exemplo as TVs e monitores de computador, nem por que apenas alguns, dos 22 barracões do Eco Cidadão, estão recebendo o Câmbio Verde e não há um rodízio entre todos. O diretor prometeu verificar melhor o assunto e tomar providências.

Foto: Felipe Rosa.
Foto: Felipe Rosa.

Tá ou não tá?

A advogada Isabel Kugler Mendes, do Conselho Deliberativo do IPCC, teme que os 50% do lixo que antes era absorvido pela Unidade de Valorização de Recicláveis (UVR), não estejam sendo totalmente absorvidos pelos 22 barracões do projeto Eco Cidadão, conforme informa a prefeitura. “Se antes eles já não davam conta do que recebiam, imagina agora que está vindo o dobro”, diz.

Ela explica que a UVR era capaz de separar mais de 100 itens diferentes para reciclagem e quase nada ia para o aterro sanitário (para onde vai o lixo orgânico, que não tem aproveitamento). Já os recicladores do Eco Cidadão, afirma Isabel, separavam no máximo cinco itens e o resto ia para o aterro. Na visão da advogada, não é possível que, agora, o Eco Cidadão esteja absorvendo estes outros 95 itens. “Pra onde está indo este lixo excedente?”, questiona.

Social

Segundo Isabel, a venda dos recicláveis processados na UVR chegou a render R$ 500 mil por mês. Nos últimos tempos, esse lucro estava entre R$ 250 mil e R$ 300 mil. O dinheiro era integralmente doado para a Fundação de Ação Social (FAS), que atendia cerca de 600 instituições sociais com alimentos, roupas, sapatos, cobertores, entre outros itens. Esse número de instituições era capaz de ajudar cerca de 500 mil pessoas por ano, cita. “Atualmente a FAS não está atendendo toda esta demanda, por conta da falta do dinheiro que vinha da UVR”, lamenta Isabel, preocupada com o lado social do fechamento do IPCC.

Não é bem assim

Paulo Horácio, superintendente executivo da FAS, explica que a fundação não recebia dinheiro diretamente do IPCC. Do faturamento que a UVR tinha com a venda do lixo reciclável, segundo contrato, 30% deveriam ser revertidos para o próprio custeio administrativo da usina e 70% a obras de ação social. Através dos Centros de Referência e Assistência Social (Cras), a FAS indicava instituições e famílias com necessidades específicas e o IPCC é quem direcionava as doações diretamente a estas entidades (roupas, alimentos, fraldas, materiais de construção, entre outros itens). “Mas o IPCC também ajudava instituições cadastradas diretamente com eles, sem ligação com a FAS. Assim não temos como saber ao certo se os 70% deste recurso eram inteiramente destinados a ações sociais, conforme o contrato”, observa.

No entanto, explica Paulo, o rompimento dos contratos e convênios entre prefeitura e o IPCC são devido à legislação que entrou em vigor no início do ano, o Marco Regulatório do Terceiro Setor, que determina que nenhuma entidade do terceiro setor pode ter ligação com o poder público, se não for por um chamamento público. “A partir de agora, temos que abrir uma espécie de edital e chamar todas as entidades que tenham interesse em participar de projetos sociais com a prefeitura. Mesmo que a prefeitura queira reatar o relacionamento com o IPCC,terá que ser através de edital, concorrendo igualmente com outras entidades”, detalha.

Foto: Felipe Rosa.
Foto: Felipe Rosa.

Mapa digital

O superintendente revelou que deseja criar um aplicativo para celular, para servir de ponte entre entidades do terceiro setor, projetos sociais e pessoas que queiram colaborar com eles. Paulo revela que a FAS deve abrir um novo chamamento em seu site, para que as entidades que eram ajudadas diretamente pelo IPCC se cadastrem e descrevam qual era a ajuda que recebiam, para que a fundação tenha uma noção do impacto social da falta da verba que vinha da UVR.

Desempregados

O fechamento da Unidade de Valorização de Recicláveis (UVR), em Campo Magro, resultou em 158 demissões. Os funcionários já estavam desde maio sem receber salários e agora não sabem nem se vão receber a verba de rescisão trabalhista, já que o Instituto Pró-Cidadania de Curitiba (IPCC) e a Prefeitura de Curitiba estão brigando para ver de quem é esta responsabilidade. A orientação dada aos funcionários é que procurem a justiça para receber seus direitos.

Foto: Felipe Rosa.
Foto: Felipe Rosa.

Com lágrimas nos olhos, a recicladora Olinda Ribeiro, 57 anos, fala que irá procurar outro trabalho. “Já fui costureira, vou tentar algo nesse ramo. Mas na minha idade é difícil”, disse ela, que também teme pela vida de seu marido. Ele também era funcionário da UVR, porém está afastado pelo INSS há dois anos, por causa de problemas no coração. “Esses dias fui marcar a data de uma das angioplastias que ele terá que fazer e o plano negou, porque faz quatro meses que a empresa não paga nossos planos de saúde”, lamentou ela, chorando. O plano do casal, agora, é se mudar para a casa que a enteada comprou em Fazenda Rio Grande, pois não terão condições de continuar pagando aluguel em Campo Magro.

Olinda fala sobre o caso. Foto: Felipe Rosa.
Olinda fala que irá procurar outro trabalho. Foto: Felipe Rosa.

O haitiano Enol Duner, 28, também está muito apreensivo. Sua esposa está grávida, prestes a dar à luz, e ele precisa pagar o aluguel e manter a futura família. Ele também manda dinheiro mensalmente para sua mãe, que mora no Haiti e não tem nenhuma fonte de renda por lá. “Aqui no Brasil eu não tenho ninguém pra pedir ajuda. E não tenho como voltar pro Haiti. Primeiro, porque preciso de muito dinheiro pra comprar a passagem. Segundo, que lá está pior que aqui”, comentou. Além de Enol, outros cinco haitianos que trabalham com ele não sabem o que fazer, onde achar emprego, onde morar.

Justiça

Os trabalhadores da UVR dizem que a empresa só vai conseguir liberar para eles o FGTS (que não é depositado desde o fim do ano passado) e o seguro-desemprego. Em relação ao restante das verbas rescisórias, entre elas, a multa de 40%, eles foram orientados a buscar a Justiça para conseguirem receber. Isto porque IPCC e prefeitura estão brigando para ver de quem é esta responsabilidade.

O porquê da briga

O IPCC é um a entidade sem fins lucrativos, que trabalhava em parceria com a prefeitura. Com verbas cedidas pela gestão municipal, gerenciava diversos serviços à comunidade. Um deles é a UVR, que assim como o IPCC, está fechando as portas porque a prefeitura não está mais repassando verbas (que eram usadas no pagamento dos salários). O IPCC diz que é responsabilidade da prefeitura pagar as rescisões trabalhistas, por entender que os serviços eram prestados para o município, em prol da população.

Já a prefeitura diz que, como os funcionários são do IPCC, é o instituto que tem que arcar com as rescisões. “Por contrato, as obrigações trabalhistas são responsabilidade do IPCC”, alegou a prefeitura, em nota oficial. O IPCC diz que deixará a cargo da Justiça esta decisão. Mas ressalta que não tem dinheiro para isto no momento, caso a Justiça lhe determine esse ônus.

O fato é que os trabalhadores da UVR fizeram uma reunião na tarde do último dia 30 de junho, com o objetivo de buscarem mais informações sobre os seus direitos e de conversarem sobre a abertura de uma associação, para que possam gerir a UVR por conta própria, como uma cooperativa. Dos 158 demitidos, cerca de 100 mostraram interesse em participar da associação, que deve se chamar Associação de Recicladores da Fazenda Solidariedade. A prefeitura concordou em fazer um contrato de comodato, para que os associados continuem usando as instalações da UVR (o local pertence à Fundação de Ação Social, da prefeitura) e a gerenciem como acharem melhor. Os ex-funcionários esperam agilizar o processo e fazer a usina voltar a funcionar ainda este mês.

Ajuda pra volta ao trabalho

O diretor do Departamento de Limpeza Pública de Curitiba, Edelcio dos Reis, entende que estas pessoas não podem ficar desempregadas, mas também não pode absorvê-las nos quadros da prefeitura. Por isto, afirma que está dando todo apoio à criação da associação de recicladores. Desta forma, eles poderão voltar a ter uma renda, gerindo eles próprios o trabalho na usina.

Segundo o diretor, a prefeitura se compromete a voltar a mandar os caminhões de recicláveis para a UVR, como fazia antes, assim que a associação iniciar seus trabalhos. É claro que o trabalho não será um emprego formal, como antes, com carteira assinada e diversos benefícios. Mas os trabalhadores poderão dividir entre eles o lucro que tiverem com a venda dos recicláveis.

Sobre o autor

Giselle Ulbrich

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