Centro Mercês

Não ao assédio!

Escrito por Maria Luiza Piccoli

Apenas 7% das vítimas de algum tipo de abuso sexual denúncia o crime à polícia

Guarde este número: 29.849. Segundo os Relógios da Violência – do Instituto Maria da Penha esse é o número de mulheres que sofreram algum assédio no Brasil, contando do começo do dia até o momento que iniciei a redação desta reportagem. Agora pare tudo e conte até 1. Pronto. Mais uma vítima entra para as estatísticas.

Mesmo com o respaldo de leis como a “Maria da Penha” e a própria tipificação penal, criminosos continuam agindo nas mais diversas situações. No transporte coletivo, na rua, no trabalho. De um lado, o medo e a indignação das vítimas. Do outro, a impunidade dos agressores. No fundo, uma pergunta ainda incomoda vítimas e testemunhas: até quando?

Há alguns meses, a publicitária Gabriela*, 29, foi seguida na rua quando voltava do trabalho, na companhia de uma amiga. “Ainda não estava escuro. Descemos do Inter 2 no tubo das Mercês e seguimos a pé, em direção à Rua Padre Agostinho, quando passamos por um homem que nos chamou de ‘delícia’. Ignoramos e continuamos o caminho, quando percebemos que ele estava andando atrás de nós. Ele caminhava lentamente, se escondendo atrás dos postes”, lembra.

Assustadas, as amigas caminharam mais alguns metros e encontrou um grupo de desconhecidos na esquina. “Fingimos que eles eram nossos amigos e fomos, rápido, na direção deles falando alto e fazendo de conta que nos conhecíamos. O homem mudou de direção e foi embora. Preferimos não procurar a polícia”, comenta.

Silêncio

Gabriela não é a única a deixar de denunciar situações como essa. Uma pesquisa realizada no fim do ano passado pelos alunos do curso de psicologia da FAE Centro Universitário, revelou que das 7.864 entrevistadas de todo o Brasil, apenas 579, ou seja, apenas 7,36% do total, procuraram as autoridades policiais após sofrerem algum tipo de assédio.

A pesquisa incluía atos como assobios, cantadas, comentários de cunho sexual, olhares insistentes e até o toque sem permissão. Os principais motivos da omissão, segundo a pesquisa, são a vergonha e a certeza da impunidade. “Muitas veem o assédio como uma rotina e a maioria acha que não adianta denunciar, pois isso não resolve nada no Brasil”, afirma o professor de estatística, pesquisa de mercado e análise multivariada, Adriano Toledo Pereira, que conduziu a pesquisa.

Impunes

Crimes de assédio ainda são considerados como infrações de “menor potencial agressivo”. Foto: Felipe Rosa
Crimes de assédio ainda são considerados como infrações de “menor potencial agressivo”. Foto: Felipe Rosa

Em Curitiba, dados divulgados em janeiro pela Secretaria de Segurança Pública do Paraná (Sesp) apontam que 858 crimes contra a dignidade sexual foram registrados em 2017. As estatísticas incluem cerca de 60 casos de assédio contra mulheres em ônibus, estações-tubo e terminais da cidade somente entre os meses de janeiro e outubro, segundo a Guarda Municipal.

Na prática, porém, os números são bem mais altos e o baixo registro de denúncias preocupa as autoridades, uma vez que refletem a impunidade de muitos agressores, que continuam agindo livremente. Foi justamente por saber disso que a estudante de fotografia, Clara*, 19, procurou a Guarda Municipal imediatamente depois de passar por uma situação constrangedora no transporte coletivo.

O caso aconteceu há um ano, mas os momentos de medo e nojo a assombram até hoje. “Eu estava de pé no ônibus e ele parado, na área reservada aos cadeirantes. Percebi que ele se mexia de forma estranha e quando vi, ele estava se masturbando. Fiquei nervosa e revoltada. Falei alto com ele, e ele começou a me xingar dizendo que me bateria na hora que eu descesse do ônibus”, conta. O homem, identificado como Jefferson Pedroso Ribeiro, 33, foi preso em flagrante por uma equipe da Guarda Municipal, alguns dias depois, na mesma linha de ônibus.

Na Delegacia da Mulher, local para onde o agressor foi levado, a surpresa: com uma extensa ficha criminal, Jefferson acumulava nada menos que 20 ocorrências por atos obscenos. Nos registros, relatos de masturbação em público e ofensas. Liberado após a assinatura de um termo circunstanciado, Jefferson voltou às ruas no mesmo dia comprometendo-se somente a comparecer a uma audiência de conciliação, que foi marcada para alguns meses depois. Adivinha se ele deu as caras? “Fico indignada”, afirma Clara. “Ele pode estar, nesse momento, fazendo as mesmas coisas com outras meninas”, desabafa.

De acordo com a delegada Eliete Aparecida Kovalhuk, da Delegacia da Mulher de Curitiba, o fato de crimes como este ainda serem considerados infrações de menor potencial ofensivo, não podem desestimular as vítimas a procurarem a polícia. De acordo com a delegada, a falta de denúncias formais pode funcionar, muitas vezes, como fomentador à ação dos criminosos.

“As pessoas normalmente não têm tempo, ou consideram desnecessário procurar a polícia. Isso deve ser desmentido, porque se os agressores não forem identificados ou chamados, eles vão continuar agindo. Toda a situação deve ser registrada, justamente para combater a sensação de impunidade que lhes permite sentir confortáveis para continuar praticando esses delitos e, muitas vezes, vindo a cometer crimes mais sérios, como estupro, por exemplo”, explica.

Só aumenta

Você ainda lembra do começo da reportagem? Em poucas horas o número de assédios no Brasil saltou para 36.370. A questão, de fato, merece atenção. De acordo com a pesquisa realizada pelos alunos do curso de psicologia da FAE, mais de 95% das mulheres afirmaram querer a criminalização das chamadas “infrações contra a dignidade sexual” como assobios, cantadas, toques sem permissão, olhares insistentes e comentários de cunho sexual. Além, é claro, de situações extremas como a vivida por Clara* no transporte coletivo de Curitiba. Vale ressaltar que, ao contrário do que muitos supõe, assédio não é sinal de elogio, nem valorização. Mas agressão e desrespeito. É o que 90% das entrevistadas da pesquisa afirmaram sem hesitar.

*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das entrevistadas.

Como se proteger?

De acordo com os dados levantados na pesquisa, 70% das pessoas ouvidas declararam ter mudado a rotina para evitar o assédio. Será que isso resolve? De acordo com a delegada Eliete Aparecida Kovalhuk, da Delegacia da Mulher de Curitiba, enquanto não houver uma mudança efetiva no que diz respeito à educação e ao respeito à mulher em âmbito social, algumas medidas podem sim, prevenir o assédio.

“Os bons e velhos conselhos de mãe como evitar circular sozinha em locais ermos durante a noite já evitam problemas. É importante porém que todas as mulheres tenham a consciência de que em nenhum momento são culpadas pela violência que sofrem. Ninguém se coloca numa situação como essa gratuitamente, seja pela roupa que usa, ou locais que frequenta”, afirma.

Denuncie!

Viveu ou presenciou alguma situação de assédio? A delegada alerta que, apesar da raiva, não se recomenda fazer justiça com as próprias mãos.

“Deve-se evitar perder a razão. Em qualquer situação, o ideal é procurar a primeira força de segurança disponível e denunciar. No caso do transporte coletivo, por exemplo, motoristas e cobradores têm preparo para agir nessas circunstâncias, travando as portas do ônibus e acionando a Guarda Municipal. Por isso, é importante alertá-los no momento em que a infração esteja acontecendo”, aconselha Eliete.

 

Sobre o autor

Maria Luiza Piccoli

(41) 9683-9504