Curitiba

Uma década de ‘seca’

Escrito por Maria Luiza Piccoli

Lei que fez o motorista ter mais consciência em relação à direção e bebida completa 10 anos e evitou muitas mortes

“Blitze”, “teste”, “bafômetro”. Se você dirige há pelo menos dez anos essas palavrinhas certamente ganharam um novo significado para você desde 2008, quando entrou em vigor no Brasil a lei que aniquilou qualquer tolerância ao álcool no organismo dos motoristas. Na semana em que a Lei Seca comemora uma década de vigência, a Tribuna do Paraná foi conferir o que, de fato, mudou no dia a dia dos condutores pelas ruas de Curitiba e mostrar como, até aqui, o rigor da lei serviu para aumentar a consciência de que álcool e direção, definitivamente, não combinam.

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Um estádio de futebol cheio. Esse é o melhor parâmetro para mostrar, em números, quantas mortes foram evitadas desde a entrada em vigor da Lei 11.7005, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), endurecendo a tolerância para quem bebe e dirige. Dados recentes divulgados pela Escola Nacional de Seguros apontam que cerca de 41 mil mortes e 235 mil casos de invalidez permanente foram evitados desde que o estatuto passou a valer oficialmente. Se há dez anos a rigidez da nova lei “chegou causando”, aos poucos, o aumento do rigor sobre o motorista que bebe e dirige imprimiu nos condutores sentimentos polêmicos, mas que enfim, pareceram ser os únicos a surtir efeito: o medo da punição e a angústia pelo valor da multa.

Assim foi com Flávio Rodrigues*, 26, que para conversar com a Tribuna, preferiu usar um pseudônimo. O rapaz,que sentiu na pele as consequências de assumir o volante depois de beber, garante que nunca mais vai cometer o mesmo erro. A infração, que aconteceu no final de 2015, marcou a rotina do jovem durante todo o ano seguinte, já que sua carteira nacional de habilitação (CNH) foi apreendida após a abordagem de uma viatura. “Eu não tinha bebido muito, estava ‘tranquilo’. A viatura me abordou na altura da Praça do Gaúcho. Eu encostei e fiz o bafômetro.

Foto: Átila Alberti.
Foto: Átila Alberti.

Na hora eles me informaram que teria de chamar alguém pra me buscar porque eu não poderia mais dirigir”, lembra. Segundo Flávio, a multa de R$ 1.915 mil que levou na época foi o menos pior. “O mais difícil foi abandonar o carro completamente durante um ano”, revela o rapaz que, ao longo de 2016, aprendeu a ser virar com caronas e transporte coletivo. Lição aprendida, Flávio nunca mais bebeu e dirigiu. “Se eu sei que vou beber, o carro fica na garagem”, afirma.

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Ao contrário de Flávio, boa parte da população ainda insiste no erro. Dados do Ministério da Saúde indicam que a frequência de adultos, no Brasil, que admitem dirigir depois de beber aumentou 16% entre 2011 e 2017. A estatística surpreende já que, mesmo sob uma das legislações mais rigorosas do mundo, o brasileiro ainda “tenta dar os seus jeitinhos”. De acordo com a coordenadora do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA) Erica Siu – a resposta para esse comportamento é uma só: falta de informação sobre o verdadeiro perigo de dirigir alcoolizado. “Mesmo em quantidades pequenas, a ingestão de bebida alcoólica aumenta o risco de acidentes. Os efeitos da bebida variam se a pessoa estiver de estômago cheio ou vazio, e também de acordo com características individuais, como gênero (mulheres são mais suscetíveis), idade e condição de saúde”. Erica explica ainda que, além de prejudicar funções indispensáveis à segurança ao volante – como a visão e os reflexos-o álcool diminui também a capacidade de discernimento ao volante.

Não dá nada mesmo?

Reflexo do cenário nacional, no Paraná, os números ligados à bebida e direção também são altos. Segundo a Secretaria Municipal de Trânsito de Curitiba (Setran), só no primeiro trimestre de 2018, mais de 3 mil acidentes foram registrados nas ruas da capital em decorrência da ingestão de bebidas alcoólicas e, quem pensa que é só o motorista que se comporta de forma imprudente, está muito enganado. Pedestres que bebem e acabam se envolvendo em acidentes também entram para a triste estatística. Segundo a própria Setran, um terço dos atropelamentos registrados em Curitiba envolviam indivíduos que andavam embriagados pela rua. Dados divulgados em maio, pelo Programa Vida no Trânsito, apontaram que ao todo 49 pessoas morreram ao circularem a pé, depois de beberem. Isso desde o começo do ano.

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Desrespeito?

Certeza de impunidade? Afinal, por que tanta gente ainda assume esse risco? De acordo com o coordenador da Comissão de Mobilidade Humana e Trânsito do Conselho Regional de Psicologia do Paraná, Hugo Nascimento Rezende, a resposta está no hábito do brasileiro que, por muitos anos se acostumou à cultura do “não dá nada”. “As pessoas não se sentem sensibilizadas de nenhuma maneira. A bebida tem um papel social muito significativo no Brasil, sempre atrelada à festa, à celebração, à alegria. Se por um lado o consumo do álcool é incentivado, por outro, quase não é punido quando atrelado ao trânsito. Isso traz um sentimento de segurança suficiente para fazer com que as pessoas acreditem que estão acima dos riscos. Que jamais sofrerão as consequências”, explica.

Se você é dos que acredita que não tem jeito, a boa notícia é que a solução existe. Mas vem a passos lentos. Segundo Rezende, a chave que vai destrancar a consciência do brasileiro em relação ao álcool e direção está em campanhas e políticas públicas associadas à fiscalização. Remédio já usado antes, e que até onde sabemos, deu bastante certo no Brasil. “Pra quem duvida, o cigarro e o cinto de segurança são ótimos exemplos. Há duas décadas as pessoas fumavam em lugares fechados e não estavam nem aí. Um pouco antes disso, o cinto de segurança era só enfeite. Hoje as pessoas não põe mais o cinto por causa da lei mas porque sabem que é perigoso trafegar sem ele. Mesmo coisa o cigarro. As pessoas deixam de fumar, não pelo contexto legal, mas por saberem que faz mal à saúde. Espera- -se que a mesma consciência surja em relação ao álcool e o volante”, finaliza.

Após a morte

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Maria Luiza Piccoli

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