Curitiba

Dirigindo a própria vida

No comando da própria vida e de milhares de pessoas que embarcam e desembarcam nas linhas de ônibus conduzidas por ela, a motorista Lurdes de Mel, 38 anos, há um mês estreou na nova profissão, realizando um sonho acalentado por quase 20 anos. Uma conquista ainda rara no universo feminino.

Segundo o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros no Estado do Paraná (Setransp), dos 7 mil motoristas de ônibus da Rede Integrada de Transportes (RIT), pouco mais de 70 são mulheres. Entre os cobradores, a participação feminina já é de um terço do total (de seis mil profissionais duas mil são cobradoras).

Lurdes é tratada por todos por “Lurdinha”, apelido que a acompanha desde a infância e que foi reforçado pela estatura dela, 1,53m. Tanto que um dos acessórios obrigatórios da jornada de trabalho dela é o travesseiro no encosto do banco. “Só assim para as costas não reclamarem muito, já que falta tamanho”, brinca.

Mas no volante, Lurdinha cresce com a competência e a responsabilidade que a profissão exige. “Acho que as mulheres têm características que são grandes qualidades para conduzir um ônibus do transporte coletivo como cautela e paciência com um trânsito bem complicado”, explica.

Outra faceta feminina, a de assumir várias tarefas ao mesmo tempo, também parece ser um grande diferencial na atividade. Tanto que ela conduz o micro-ônibus Jardim Esplanada, que não tem cobrador, com uma desenvoltura de profissional com décadas de experiência, tanto no atendimento de quem tem dificuldade de passar o cartão, quanto na direção do veículo.

Pequena no tamanho, Lurdinha foi gigante pra superar desafios.
Pequena no tamanho, Lurdinha foi gigante pra superar desafios. Foto: Gerson Klaina

“Cada veículo tem seus macetes. Eu gosto de conduzir os ônibus maiores, mas também adoro ter tudo no meu comando como no micro-ônibus”, compara. Mas o plano dela é dirigir o maior de todos, o biarticulado. “De pequena já basta eu”, avisa.

Pela trajetória de Lurdes, alcançar essa meta é uma questão de tempo. Desde os 20 anos, ela admirava a profissão, mas precisou adiar os planos para a sobrevivência. Trabalhou por 11 anos em lotéricas e outros sete anos como atendente na linha especial na empresa onde está até hoje, a Araucária Transportes Coletivos.

“Amava o meu trabalho como atendente, até porque as crianças especiais surpreendem, mas entrei lá com a intenção de um dia fazer a escolinha de formação, só que antes precisei reunir o dinheiro para a troca da habilitação de A para D”, explica.

Dinheiro que é difícil fazer sobrar com um casal de filhos para criar (hoje o rapaz tem 17 anos e a menina, 12) e com outros planos, como ter uma casa própria. “Não tenho carro até hoje, porque a prioridade maior sempre foi a casa e os meus filhos. Passei por um período difícil quando me separei, mas devagarinho a gente arruma tudo”, ensina.

Com os olhos brilhando e as mãos no volante, Lurdes sabe que o caminho para novas conquistas é feito de esforço e determinação para superar as dificuldades e ser feliz. Tanto que ela não abre mão de batom e cremes para enfrentar a jornada que inicia às 3h30, para sair da garagem da empresa às 5h52 e seguir viagem, em um caminho que poucos dão a vez, mas atravessá-lo é parte inerente do dom de ser mulher.

Passageiras de jornada

A Tribuna embarcou na linha Jardim Esplanada e completou uma volta tendo Lurdinha como motorista. A avaliação tanto da reportagem quanto dos passageiros foi positiva. “Mulheres são mais cuidadosas, eu me sinto mais segura em viajar com as motoristas”, explicou a professora aposentada Lourdes Caldas, 70 anos. “Não houve nenhum susto”, acrescentou o servidor público Flávio Alves, 48 anos.

Lourdes (esquerda): "Dupla e tripla jornada. Flávio: "Não houve susto". Nerci: "mulheres abafando".
Lourdes (ao centro): “Dupla e tripla jornada. Flávio: “Não houve susto”. Nerci: “mulheres abafando”.

No ponto de embarque na Praça Tiradentes, a expectativa de quem ainda iria seguir viagem com Lurdinha também era de total aprovação. “As mulheres estão abafando e dirigem melhor do que qualquer homem”, atestou a aposentada Nerci Barbosa, 70 anos.
A reflexão fica para os dilemas da própria mulher. “Acho fundamental essa independência financeira que conquistamos, mas é preocupante esse excesso de carga, assumindo duplas e triplas jornadas e sempre vivendo a eterna culpa de não se dedicar ainda mais”, diz a passageira Lourdes Caldas.

Sobre o autor

Magaléa Mazziotti

(41) 9683-9504