Centro

No rabecão com estilo

Escrito por Alex Silveira

Agente do Instituto Médico-Legal chama atenção nos locais de crime e nas redes sociais com postagens e estilo peculiares

“Quem dá um sentido para a vida é você mesmo”. A frase é de Hamilson Jorge Junior, 36 anos, “O Cara” do Instituto Médico-Legal (IML). O apelido veio quando o estilo pouco comum para um agente público que carrega corpos de pessoas vítimas de violência ou de acidentes passou a ser destaque em cenas de crimes e no perfil dele nas redes sociais. Bombeiro acostumado a salvar vidas desde os 29 anos, há dois ele trabalha recolhendo a morte. Seu perfil na rede social Instagram é polêmico.

As fotos são bonitas, muito bem produzidas, mas retratam artisticamente os cadáveres que ele recolhe durante o trabalho. Nas postagens, vídeos com mensagens filosóficas avisam: “se você não quer imagens fortes, não me siga”.

Desde que entrou para o IML, em abril de 2016, sua vida se transformou. “Eu levei um choque de realidade”, diz. “Era bombeiro e, de repente, estava abraçando corpos em decomposição para tirá-los da forca. Isso me amadureceu e comecei a pensar muito sobre a morte, em como a vida pode ser levada para não ser abreviada de forma sorrateira”, afirma o hipster* do IML.

A história mais macabra que ele viveu foi em uma delegacia, em um caso de enforcamento. “Quanto entrei na cela, senti um calafrio. Os presos estavam agachados, sendo vigiados, e eu fui até onde o corpo estava. Era horrível. Comecei a pensar como era viver ali, me coloquei na posição de cada um. Não vou julgar se eles eram merecedores daquela situação, mas dá para saber que não é possível viver em paz desse jeito. Eu não sabia que o mundo era assim. Eu era uma criança até sentir a morte falando comigo”, descreve Hamilson. “No meu trabalho, conheço histórias que poderiam ter tido um final mais feliz. É essa a mensagem que quero passar”.

Foto: Felipe Rosa
Foto: Felipe Rosa

Hamilson já foi casado por nove anos, mas está solteiro. Quem o segue no Instagram sabe que não é apenas o registro da morte que se destaca. Selfies e videos muito bem produzidos até parecem ter sido feitos por um fotógrafo profissional, o que causa suspiros em corações mais derretidos. Um metro e noventa de altura, sapatos quarenta e quatro, olhos levemente puxados, barba, cabelos para trás presos com um minicoque, corpo malhado pelo crossfit, suspensórios por sobre a camisa, voz grossa e um jeito de andar tranquilo de quem veio para apaziguar um momento difícil para as famílias. “Gosto de me vestir e trabalhar nesse estilo. Talvez por isso eu receba algumas mensagens curiosas sobre o meu estado civil. Quando chegam com respeito eu respondo, só não pode ultrapassar a linha”, explica.

Olhar de fotógrafo

Embora pareçam profissionais, as fotos são produção própria. “É o meu olhar sobre mim mesmo e sobre as situações que vivo”, conta o agente, que frequentou por dois anos o curso de Publicidade e Propaganda, sem concluir. “Uma professora me disse que as fotos são um recorte do tempo, por um determinado ângulo. Mesmo que você tire dez fotos em sequência, uma será diferente da outra por instantes. Tento ver as coisas por outra perspectiva”, filosofa.

A educação que recebeu na infância interfere. “Meu pai gostava de aventura pela natureza e eu sempre estava junto com ele, mas eu me sentia desamparado em relação às coisas da vida. Quando eu trocava ideia sobre algum assunto, sobre trabalho, ele dizia que o seu desejo era apenas que eu fosse feliz. Acho que isso dificultou um pouco as coisas para mim porque eu realmente buscava uma orientação. Esse vazio que eu senti é o que eu quero evitar ao falar da morte pelo Instagram”, comenta.

“Tem morto aí?”

Foto: Reprodução/Instagram
Foto: Reprodução/Instagram

O “hipster” do IML é formado em Administração. Antes de entrar para o Corpo de Bombeiros, ele trabalhou na Votorantim. “Olhei pela janela e, em meio aos cálculos que fazia no computador, vi um dia de sol. Decidi que não queria mais ficar ali. Sempre gostei da sensação de liberdade”, explica. Foi quando prestou o primeiro concurso para bombeiro, em 2005, mas foi reprovado por causa de um problema de visão. “Fiz a cirurgia para corrigir a miopia e tentei de novo”, conta. Em 2010, ele passou. “Nesse intervalo trabalhei aqui e ali, mas o objetivo era claro”, afirma.

A chegada no IML foi por acaso, na época em que apareceram denúncias sobre um suposto favorecimento do instituto para algumas empresas funerárias. Pessoas foram afastadas porque estariam indicando tais funerárias para as famílias das vítimas durante as ocorrências. Hamilson foi realocado para compensar a falta de pessoal. “Quando entrei, estava um pouco depressivo. Ninguém quer começar um casamento e terminá-lo em divórcio. Estava vivendo esse momento e o IML acabou me ajudando nisso, me deu uma oportunidade de construir uma nova vida. Foi quando comecei a praticar crossfit, saí de 105 quilos para 90 e me tornei vegetariano. Mudei muito”, brinca.

A inspiração para usar o Instagram também veio do cotidiano no instituto. O IML é chamado para resolver casos que exigem uma perícia médica policial. A dor das famílias que vivem esse tipo de situação é muito grande. “Chegou ‘O Cara’ do IML, as pessoas dizem. Mas a verdade é que ninguém quer ver o IML chegando. Na hora do trabalho é muito difícil dizer qualquer coisa para alguém. O espaço que encontrei para mostrar o que penso sobre esses momentos foi o meu perfil Instagram”, explica. Hamilson se sente uma peça importante no jogo.

“Entendi que a minha posição é única. Tenho acesso aos policiais, à imprensa, às famílias. Por isso me sinto na obrigação de registrar histórias. De gravar vídeos sobre o meu trabalho e orientar quem quiser me seguir”, diz.

Mostrando a realidade

Foto: Reprodução/Instagram
Foto: Reprodução/Instagram

Não há um planejamento para os “stories” do dia, como são chamadas as fotos e vídeos que ficam no ar por 24 horas e depois desaparecem. “Chego no plantão e falo sobre algo. As postagens podem se tornar um tema central”, explica. Foi assim com “tem morto aí?”, tema que surgiu da curiosidade das pessoas em saber se tem cadáver na viatura do IML.

“É o que mais ouço. Sou meio sarcástico quanto a essa dúvida e valeu um vídeo. Aí, um dia, fui dar carona para um perito que me segue no Insta e ele já chegou brincando: ‘tem morto aí?’. Foi legal saber que a mensagem está chegando onde tem que chegar”, exalta. “Alguns seguidores até me comovem dizendo que eu mudei a vida deles. Dizem que eu mostro o que está lá fora, a realidade. Quando me manifesto, encontro pessoas que se identificam comigo, formo a minha tribo”, conta.

Sobre as críticas que vêm de algumas pessoas por causa de suas postagens, Hamilson rebate: “Recebo muito mais agradecimentos e sugestões do que críticas. Quem me segue sabe o que eu faço. A morte é real, nosso tempo está acabando, cada um tem o seu reloginho. Meu desejo é aconselhar as pessoas a mudarem algumas atitudes que podem levar à morte. Não sei dizer onde vou chegar, mas continuarei fazendo. E outra, quer brigar comigo, passa amanhã porque eu não tenho tempo para isso”, conclui o agente.

*Hipster: termo com origem na língua inglesa que se refere a pessoas com estilo de vida alternativo, que costumam ter padrões de consumo e comportamento diferentes dos da cultura de massa.

Sobre o autor

Alex Silveira

(41) 9683-9504