Vida louca

Manhã gelada no pronto-socorro. Cansado e à procura de um café. É quando um SIATE encosta nervoso na plataforma de triagem.

Motoqueiro. Se eu pudesse definir o acidentado de moto padrão, ele teria lá seus 24 anos, seria forte, saudável e com a vida em toda a sua plenitude pela frente. Teria, seria, devia.

Junto com o alvoroço normal dos socorristas, percebo um paciente em um silêncio que preocupa. Chega imobilizado na tábua, colar cervical, soro no braço, sangue por toda parte. Na correria realizo o ABCD do trauma, tento avaliar por que tanto sangue e, sem muita dificuldade, constato que nosso paciente está em coma.

Foi prensado entre uma Kombi e um Celtinha. Coisa corriqueira. Mania diária dos motoqueiros em inventar uma mão que não existe, por entre os carros. Velocidade exagerada, que só faz sucesso mesmo na UTI ou necrotério.

Não há tempo para radiografia, encaminho logo para o centro cirúrgico. Laparotomia, toracotomia e um monte de nomes complicados na tentativa de parar uma intensa hemorragia. Por quase três horas a equipe da cirurgia fica debruçada sobre o jovem motoboy. Quando o sangramento é finalmente contido, uma parada cardiorrespiratória acaba com a alegria momentânea de todos.

Medicamentos, choque depois de trinta minutos de manobras e massagem cardíaca, um silêncio incômodo invade o centro cirúrgico. Sim. Mais uma vez a brutalidade do trânsito venceu a nossa falsa civilidade.

É quando uma família assustada chega ao hospital. Não gosto dessa parte da história. Converso com o pai, descrevo a extensão dos ferimentos, explico os procedimentos empregados. A notícia da morte transtorna a família. O irmão é o único que consegue falar comigo. Lembra da alegria do mano, mas também da sua imprudência nas ruas, falando dele como mais um sobrevivente da ‘vida louca‘.

Lamento em silêncio enquanto outra ambulância chega: motoqueiro.

Tem dias em que o trânsito mais parece uma linha de desmontagem. Corro para ajudar, tentando entender em que momento a vida louca perde o respeito pela própria vida.

Sério, preciso muito de um café.


OLHA SÓ:

No Brasil, em 2010, 10.894 motociclistas morreram em acidentes de trânsito. Uma média de 30 óbitos por dia. (Fonte: SIM, MS).