As filas diante das casas lotéricas crescem assim como os olhos das pessoas, que ficam gordos quando o prêmio da Mega-Sena acumula. De repente é aquela corrente pra frente, todo mundo sonhando em ficar rico, sem levar em conta que o prêmio vai apenas para uma pessoa – ou um grupo de apostadores. E normalmente, ninguém sabe quem é o feliz ganhador, o que levanta rancorosas suspeitas de treta na cumbuca. Sonhar em ficar rico não é pecado nem crime e muito menos ficar rico – desde que o felizardo em questão não catapultou a fortuna num cargo público ou atividade criminosa. Na loteria, tudo bem.

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Ela é o caminho suave para a moleza, mas depende da sorte bater em nossa porta. Ou de um sonho com os números mágicos. Quem não sonhou em ficar rico ganhando na loteria, que atire o primeiro bilhete. Por isso, quando vejo filas diante das casas lotéricas eu me lembro de Sigmund Freud. Em matéria de sonho ele era supimpa, tanto que escreveu uma obra monumental chamada ‘A interpretação dos sonhos‘, que, é bom adiantar, tem pouca utilidade para quem vai jogar na loteria. No entanto, em sua obra ‘Os sonhos no folclore‘, Freud relata um caso de loteria, de um mercador que teve um sonho com um traseiro feminino ‘com tudo o que lhe é próprio‘.

Numa metade do traseiro, estava o número 1 e na outra o número 3. Diante de tal clareza numérica e do que parecia clara sugestão onírica para investimento cego numa atividade capaz de proporcionar felicidade instantânea, como a loteria, o mercador na manhã seguinte correu para o centro da cidade e não hesitou em comprar o bilhete número 13. Ou seja, os algarismos do sonho. Nos dias seguintes, o mercador comprou os jornais e foi direto nas páginas que noticiavam o resultado da loteria. Até encontrar o do sorteio do bilhete que ele comprou. Ele ficou embasbacado: o número sorteado era o 103, da série 8. E o prêmio era 200 mil rublos, coisa na época para deixar qualquer um rico.

O mercador fechou o jornal e resmungou para si mesmo: ‘Eu devo ter cometido algum engano. Há algo errado‘. Então, ele procurou um amigo sábio, que muito antes de Freud já trabalhava na área de interpretar os sonhos no varejo e no atacado e contou a ele o que ocorreu. O amigo não perdeu um minuto para matar a charada: ‘Ora, ora, meu caro! O que aconteceu é que você não soube interpretar o sonho‘. O mercador ainda perplexo pediu explicação e o amigo disse: se os números estavam no traseiro é que havia um elemento simbólico, ‘vamos dizer oculto‘. E se estavam um distante do outro estava claro que havia um zero no meio. O mercador exclamou: ‘Nunca me ocorreu que o traseiro tivesse um zero‘. O amigo ainda arrematou: ‘Agora não adiantar chorar o leite derramado‘.

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Freud trata o assunto como folclore. Mas na minha infância cansei de ouvir histórias de pessoas que sonharam com números e não jogaram e quando foram conferir, tava lá a sorte grande: os números do sonho, numa fila obediente, antecipada ao incrédulo no sonho. E a ele restava passar o dia, a semana e talvez o resto da vida num mau humor danado, porque não acreditou no sonho e não jogou. Eu acho que o resumo da história é o seguinte: não adianta sonhar, tem que saber interpretar o sonho de forma correta. Talvez isto seja uma metáfora para cada um.