A empregada de Dona Martha só falava palavrões em latim

Martha tinha ideia fixa por boas maneiras, tanto que falava que seu nome era com “th” como se a pessoa ao pronunciar Martha falasse algo diferente de Marta. Martha era médica, refinada e falava baixo. Falava inglês, francês e alemão. Gostava de música clássica, piano, ópera, balé e coisas do gênero. E era fã dos filmes de Federico Fellini, por quem se apaixonou platonicamente. No outro lado estava Zenaide, a empregada doméstica, que gostava de falar dois idiomas: português e palavrão. Ela gostava de forró, samba e vanerão. Uma precisava da outra. Martha do trabalho de Zenaide e esta do salário da patroa. Martha era fina e Zenaide cascuda. E mais: as duas eram solteiras e solitárias.

Como toda pessoa que gosta de palavrão, Zenaide deixava os cabeludos para ocasiões especiais, quando queria finalizar uma discussão, mesmo que ela não tivesse começado. Zenaide era de confiança e Martha para não chamá-la de empregada, chamava de “secretária”. A coisa complicou um dia quando Martha apresentou Zenaide para Dinorá, uma amiga: “Esta é Zenaide, minha secretária”. Zenaide estava com vassoura entre as mãos e com os nervos à flor da pele. E não economizou o palavrão: “Secretária é a puta que pariu. Eu sou doméstica. Se fosse secretária estava na clínica da senhora lixando as unhas e atendendo ao telefone”.

Ali Martha sentiu que perto de estranhos, tinha que pegar leve com Zenaide. De preferência falar pouco. Mas achou que como patroa devia tomar uma atitude e tomou. Chamou a empregada para uma conversa e disse: “Zenaide, se você não sabe viver sem falar palavrão, só vou te pedir uma coisa. De agora em diante, só fale palavrão em latim”. Zenaide chiou: “Mas eu não sei falar latim!”. Martha sabia disso e sabia que ninguém além dos velhos padres sabia latim. Por isso deu a sugestão. E apavorou: “Então aprenda”. E encerrou o assunto. Mas Zenaide era o bicho e não ia deixar a patroa dar o drible da vaca nela com tanta facilidade.

Ela contou o seu drama para o padre Giovani que era velho e safado e ele tirou de letra: “Fica fria, Zenaide. Eu faço um dicionário de palavrões em latim pra você usar em qualquer ocasião, lugar e hora. Deixa com o beque paroquial aqui. Não é por isso que vai deixar de trabalhar”. Ele anotou duas dúzias de frases, disse para Zenaide como se pronunciava e entregou para ela. Zenaide estudou aquilo mais que o catecismo para fazer a primeira comunhão. Na primeira encrenca que teve na cozinha, Zenaide berrou: “Pedicabo! Sancti Stercore. Dona Martha, a pia da cozinha entupiu”.

Dona Martha correu apavorada e chegou ruborizada na cozinha. E em vez de se preocupar com a pia, se preocupou com o linguajar da empregada: “O que você falou, Zenaide, ficou louca?”. A empregada respondeu: “Falei dois palavrões. Em latim como a senhora pediu”. Dona Martha ficou curiosa: “Mas o que significam?”. A empregada se vingou da patroa: “Não é a senhora que é doutora? Devia saber. Se não sabe faça como eu, estude e aprenda”. Martha enfiou a viola no saco e não disse nada. Tinha de acostumar agora a ouvir palavrões em latim. Menos mal, já que ninguém entendia nada.

Uma manhã, Dinorá, amiga de Martha, apareceu na casa da amiga e não entendeu o dialogo entre patroa e empregada: “Olha, Dona Martha, o homem da feira quis cobrar caro o tomate e eu fiquei uma fera”. Martha quis saber o que ela fez e Zenaide respondeu que sapecou um longo palavrão para o sujeito, que ficou em estado de choque: “Pedicabo ego vos dimiserit iumentum suum”. Martha e nem Dinorá entenderam nada. Ela disse para a amiga que Zenaide agora falava latim.

No entanto, esta história tem um furo que Martha nunca suspeitou. No tempo de seminário, o padre Giovani nunca foi muito bom em latim. E tudo o que Zenaide falava tanto podia ser um palavrão, quanto qualquer outra coisa com outro sentido ou mesmo sem sentido. E não tinha importância porque como todos sabem, latim é uma língua morta e as pessoas tem um medo danado de mexer com defuntos.