Trincheira dividida

Ivan Schmidt

Caso nova medida judicial não venha a modificar as disposições finais da discutida convenção extraordinária do PMDB, realizada em Brasília, o partido não mais se alinha à base de sustentação congressual do governo Lula, além de ter decidido que Amir Lando e Eunício Oliveira, que até o início da semana persistiam ministros e na condição de peemedebistas, deviam entregar os cargos ao presidente.

Esse era o saldo do domingo que, afinal, não se afigurou tão demolidor para o partido, como se chegou a supor. Afinal, também não foi essa a primeira vez (e nem a última, estejam certos) que o partido convocou dirigentes e delegados para tratar de assuntos indigestos. Não seria de todo inusitado concluir de antemão (e muitos o fizeram) que o resultado foi o que se viu: a maioria favorável ao afastamento do governo e à restituição dos cargos, ao lado da costumeira contemporização com os recalcitrantes. E assim segue a carruagem.

Deixar o discurso inflamado de um e outro lado da momentânea trincheira, cujo espaço é disputado com igual afinco pelas facções em que se divide o PMDB de hoje e partir, digamos, para a decapitação pura e simples dos quadros que insistem em ratificar sua adesão ao governo, é algo bem mais traumático para a estrutura partidária, tendo em vista o provável ensejo de longas discussões jurídicas, que acabariam por tornar mais atormentada a trajetória que já não é pacífica.

Talvez a melhor qualificação do clima vivido pelo PMDB tenha sido a do senador Romero Jucá, um dos líderes no Senado (antes da eleição de Lula, Jucá era líder do PSDB), ao dizer que a crise será resolvida com muita conversa e mertiolate. Ora, então se pode imaginar que tudo não passou de bela encenação, de tal sorte que os vergões deixados no lombo partidário nada mais exigem que um reles curativo.

Na verdade, não está claro o suficiente que o diretório nacional do PMDB, apesar da posição a cavaleiro de estatutos e regimentos, tenha autoridade ética e moral incontestável para enquadrar e punir companheiros, pelo fato de terem cargos ou votar a favor de projetos do governo. Governos sempre cederam cargos a esse ou aquele partido, em troca de votos no Congresso. E também os partidos, ultimamente, tiveram a boca entortada pelo péssimo hábito da barganha não raro indecente dos votos que possuem na Câmara e no Senado.

Não é demais lembrar que o próprio PMDB esteve na iminência de vergar-se aos apelos candentes de Collor em favor da governabilidade, tendo-se publicado muitas vezes que o então senador Fernando Henrique Cardoso, ferrenho entusiasta da capitulação peemedebista, de pronto seria ministro das Relações Exteriores, cargo que efetivamente ocupou no governo Itamar. Assim, o PMDB agitou-se por típica tempestade desse intróito do verão, que nenhum efeito teve senão revirar alguns guarda-chuvas, lançar ao vento uns e outros chapéus e desfazer o penteado de cavalheiros de fina estampa.

Opina-se que a banda de música peemedebista pretendeu, com a súbita retreta de Brasília, dispor da oportunidade de lançar candidatos à presidência da República em 2006. Os nomes são os de Anthony Garotinho, Germano Rigotto ou, quem sabe, Roberto Requião. Em essência, a análise dos politicólogos ouvidos pela mídia diz que a razão da disputa não é outra senão o fortalecimento das campanhas onde o PMDB elegeu governadores e pretende conquistar o segundo mandato.

Cacife para empolgar a massa em torno de um nome de prestígio nacional (o partido tentou com Ulisses e Quércia, mas o fiasco foi memorável) é sabido que o PMDB há muito deixou de ter. Um candidato a presidente da República deve ter muito mais que sua mera convicção pessoal. Precisa do apoio de um punhado de células regionais importantes de seu próprio partido e capacidade para aglutinar forças políticas cujos matizes não necessariamente sejam um primor. Enfim, enquanto não se resolve a questão do financiamento público das campanhas, fazer-se tão confiável quanto a bússola ao pólo, àqueles abnegados e sofridos homens de empresa que, a custa de sacrifícios invulgares, retiram de suas parcas economias uns trocados para assoalhar inglória e estafante empreitada.

Qualquer semelhança com pessoas vivas e presentes entre nós nesse início de século é uma das mais insuportáveis coincidências que somente a tacanhez de espírito poderia engendrar. Desde já, e isso transparece como a asa de uma libélula, tal mesquinharia merece meu veemente repúdio.

Ivan Schmidt é jornalista.