Os dilemas de Medéia

Gaudêncio Torquato

"Enxergo e louvo o que é melhor, mas sigo o que é pior." A expressão, que se lê nas Metamorfoses, de Ovídio, em que Medéia (mito conhecido também nas versões de Eurípides, Ésquilo e Sêneca) se encontra diante do dilema de ajudar o marido, Jasão, contra o próprio pai, exibe o conflito entre a razão e a vontade irracional. Entre nós, explica contradições vividas por grupos que se digladiam em duas frentes de batalha que pressionam o comandante do País. De um lado, a proposta de um governo de coalizão, acolhida por Lula, que se originou da rebeldia de um grupo do PMDB que pretende abandonar a base governista. De outro, a querela entre monetaristas e desenvolvimentistas, que ameaça tornar irremediável a conciliação entre facções petistas engajadas na luta pelo domínio da política macroeconômica. Nos dois casos há uma alternativa melhor que outra para escolha pelos contendores. Mas um setor do PMDB e um agrupamento do PT, cada um a seu modo, lutam pela pior situação. Vejamos.

Um governo de coalizão pressupõe aliança entre partidos, integração de propósitos, elaboração conjunta de idéias, ocupação homogênea de espaços e decisões combinadas. Um governo de adesões, ao contrário, pressupõe organização de projetos e ações pelo partido dominante, com apoio irrestrito de siglas que aderem aos donos do poder. Este é o caso do atual governo, em que o PT dá as cartas e os partidos aliados, os aplausos. Em momentos de insatisfação, por falta de cumprimento de promessas – verbas autorizadas no Orçamento e não liberadas -, os aplausos se transformam, circunstancialmente, em apupos na forma de obstrução de votação no parlamento. Nada que alguns trocados não possam resolver.

Diante da ameaça de rebeldia no PMDB, partido com a segunda maior bancada na Câmara e a primeira no Senado, o governo acena com o tal governo de coalizão. Mas esse modelo não deveria ser concebido no início do governo? Como se pode organizar coalizão no meio do mandato presidencial, com políticas definidas e em plena execução? Ademais, começar do zero, a esta altura, seria coisa impraticável. O Executivo estaria passando recibo de má gestão. A alternativa é continuar com a marca "governo de adesão". Abrir, portanto, mais espaços para adesistas significa esticar a colcha de retalhos e não contribuir para a formação de pontos comuns aos partidos da base. Isso não viabilizaria proposta de coalizão.

Nesse ponto, chega-se à primeira conclusão. Se o PMDB quer ter projeto próprio, deixar de ser federação de interesses, se luta para atenuar a pecha de fisiologismo, farejando migalhas que caem do banquete do Planalto, há de deixar os cargos no governo, reunir os cacos, produzir um programa para o País e sair em caravana vendendo o peixe. Querer ter candidato próprio à Presidência da República, mas continuar em ministérios, parece torpeza. Só mesmo a ambição desmesurada de parlamentares pode ser capaz de escolher a pior alternativa. Ajudar Jasão ou ficar do lado do pai? Sair ou permanecer no governo? Ganhar mais cargos – tudo indica – será desmoralizante para quem vive mostrando o lenço do adeus.

O segundo conflito movimenta núcleos do PT. De um lado, desenvolvimentistas – insuflados pela saída de Carlos Lessa da presidência do BNDES e até embalados pelo clima emotivo da morte do economista Celso Furtado, ícone-mor do pensamento econômico nacional – engrossam a voz exigindo urgentes mudanças na economia. A questão já ultrapassa as fronteiras do bom senso. Não se trata simplesmente de retomar o desenvolvimento, com as vitaminas da redução da taxa Selic, controle do fluxo de capitais externos, subsídios para empresas nacionais, interrupção da captação de recursos externos pelo setor público, redução de spreads bancários, redução do superávit primário e reforma fiscal. O discurso ocupa a esfera política, dando o tom maior do debate. A esquerda começa a ensaiar denúncia do "entreguismo", pelo qual Lula se rende ao novo liberalismo do Consenso de Washington, patrocinador do Estado mínimo, livre mercado auto-regulado, inflação baixa e estabilidade da moeda com sacrifício do crescimento econômico, que são alicerces dos monetaristas.

Ora, o conflito entre desenvolvimentistas e monetaristas faz jus ao dilema de Medéia. Mudando a política econômica nos termos propostos por setores radicais, e na moldura de economias mundiais interdependentes, o País mergulharia no escuro. O modelo econômico do Brasil dos tempos de Celso Furtado está ultrapassado, mesmo que suas motivações permaneçam na ordem do dia, como os temas do pequeno crescimento, desigualdades sociais, caráter excludente do modelo adotado, taxas recordes de desemprego e expansão de tensões sociais.

Por essa razão, a visão mais clara é a paisagem aberta pela política do governo anterior, com adaptações ao momento, e esforço para diminuir o déficit público. Do lado do PMDB, o dilema abre o sinal verde para a saída e o vermelho para a permanência. Difícil, porém, é resistir à sombra da árvore do Planalto. Ante os dois dilemas ovidianos, Lula parece o próprio Janos, o deus romano de duas cabeças, uma sorrindo para o PMDB, outra fazendo careta para a banda petista do barulho.

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautor@gtmarketing.com.br