Os arquivos da guerrilha

Ivan Schmidt

Em janeiro de 1975, há mais de três décadas, o governo brasileiro deu por encerrado o episódio conhecido como a Guerrilha do Araguaia, que teve início em abril de 1972. A alta direção do PCdoB, tendo à frente o enfezado João Amazonas, diante da absoluta incapacidade estrutural de convocar parcelas da massa para implantar focos de insurreição urbana – como mandavam os bons manuais da revolução -, não teve alternativa senão rumar para os grotões do Brasil Central, onde se notava alguma movimentação de caboclos em busca de terra para plantar.

O tema voltou à agenda diária face ao recente imbróglio causado pela renúncia do ministro da Defesa, embaixador José Viegas, diante da manifestação do comando do Exército quanto às fotos do jornalista Vladimir Herzog, morto em dependências do IV Exército durante a ditadura. Depois se percebeu que as fotos não eram de Vladimir, mas as brasas já haviam virado labaredas.

Em cima desse lance, começou a se rediscutir a oportunidade da abertura dos arquivos militares sobre a Guerrilha do Araguaia, a fim de que a sociedade (e os familiares dos guerrilheiros mortos ou desaparecidos) saiba de uma vez por todas o que, de fato, aconteceu naquele período conturbado da história recente do País. O chefe do Gabinete de Defesa Institucional da Presidência da República, general Félix, já disse não achar interessante a abertura dos arquivos, sob a alegação que "há muita coisa feia lá".

A julgar pelo que aconteceu com Gregório Bezerra, líder comunista em Pernambuco, com o próprio Herzog e Manuel Fiel Filho, em São Paulo, e centenas de presos políticos Brasil afora, não há como discordar, embora não haja dúvidas quanto aos métodos utilizados para silenciar e/ou eliminar os inimigos do regime. Aliás, o clima no qual transcorreu o período mais duro do ciclo militar foi definido pelo general Jarbas Passarinho, militar dos mais alinhados ao espírito autoritário nas várias funções que desempenhou no governo de exceção e no Congresso Nacional. Ao referir-se à guerrilha, Passarinho disse que ela havia sido "uma guerra suja de ambos os lados".

É interessante fazer um contraponto entre a declaração do ex-ministro e o que disse sobre o Araguaia o também general Viana Moog, no livro intitulado História imediata, no qual escreveu que a movimentação de cerca de 10 mil homens das forças regulares na campanha contra a guerrilha foi "o maior movimento de tropas do Exército, semelhante à mobilização da Força Expedicionária Brasileira, na Segunda Guerra".

Segundo os cálculos mais otimistas, o PCdoB conseguira arregimentar mais ou menos umas 60 pessoas dispostas a empreender a derrocada do regime, desde as margens do grande rio central, atacados pela maleita e assediados dia e noite pelo insaciável apetite de milhões de mosquitos, ante a absoluta leniência dos poucos agricultores que, então, se aventuravam na área. Regime tão poderoso que se dera ao luxo de deslocar para aqueles ermos contingente numérico igual ao que viajara à Europa para integrar as forças de combate ao nazifascismo.

Somente esse dado justifica o que disse Passarinho sobre a característica primordial do desesperado conflito, na época tratado como um dos interditos à imprensa, cuja abissal diferença de efetivos explica a total aniquilação da guerrilha que, entretanto, foi capaz de resistir com impertinência e desconforto para os chefes militares até 1975, mesmo sendo operada por amadores sem o menor contato com a vida na selva, sem conhecer estratégias de guerra e, mais grave, sem contar com homens física e psicologicamente preparados para o combate.

A tática mais ousada dos guerrilheiros, que só tiveram armas apropriadas ao pegarem as que os soldados abandonaram ao debandar, era aproximar-se, furtivamente, dos acampamentos das forças legais e espetar bilhetes com o nome dos que estariam mortos no dia seguinte. Quando estavam mesmo a fim de aterrorizar, à noite, escondidos na escuridão da mata, gritavam soturnamente o nome dos que pretendiam justiçar. Passarinho teve razão ao clamar contra essa inominável sujeira…

Afinal, seria essa a razão mais forte que impediu até hoje a abertura dos arquivos da Guerrilha do Araguaia?

Ivan Schmidt é jornalista.