A saída e o espelho

Ivan Schmidt

O PMDB não quer mais participar da brigada ligeira que conquistou o governo federal em 2002, num estranho arco partidário que reuniu antigos e aparentes desafetos no campo político, algo tão improcedente como a tentativa de misturar água ao óleo. Era previsível o fato noticiado pelo O Estado de terça-feira, quanto à propalada desistência peemedebista de seguir embarcada no couraçado governista, embora essa ainda não seja a tendência dominante no partido.

No Paraná, sob o comando do governador Roberto Requião, o PMDB antecipou a proposta que levará à convenção extraordinária convocada para o próximo dia 12, de afastamento sumário do governo e devolução dos dois ministérios atualmente em poder da sigla. A posição reflete, em grau máximo de rigor, a lógica inaciana de que os fins justificam os meios. Pois, se no plano federal defende-se a saída, no âmbito local não se pensa em desfazer coisa alguma e, tampouco, exigir de volta os cargos.

O difícil nó a ser desatado está no fato de que muita gente reluta referendar a decisão extrema, já que o grêmio tem em sua história um componente fisiológico dos mais expressivos, que o fez contumaz aliado dos governos de turno, com as exceções do ciclo militar e do abreviado governo Collor.

Enquanto o grupo liderado pelo presidente nacional do PMDB, deputado Michel Temer, do qual Requião faz parte, luta pelo abandono já do governo Lula, uma renitente cambulhada de políticos que só resistem aos embates se estiverem firmemente enxertados ao tronco governista, bate o pé e se aferra aos cargos, louvando-se na lábia lulista "de que para o PMDB dois ministérios é pouco".

Diz o noticiário que esse grupo faz das tripas coração para suspender a convenção do dia 12, mediante a persuasão dos companheiros separatistas ou, se for necessário, pelo uso de medidas legais pertinentes. É mais um espetáculo melancólico que o partido, outrora tão forte e destemido na luta pela redemocratização, oferece à sociedade, desnudando as baixarias do choque interno entre ádvenas fisiológicos e puros velhos de guerra, com a deprimente exposição de cenas que fariam estarrecer um frade de pedra.

A origem do desconforto da atual ala revisionista do PMDB, que até as eleições municipais esteve à vontade no fortim governista, foi exatamente a derrota de muitos candidatos da aliança política de Lula, em capitais e cidades importantes. A ferida reabriu, mesmo porque os ministérios confiados ao PMDB têm escassa margem de influência e decisão nenhuma no atual compósito do governo, que chega ao extremo de arredar para a vala comum dos insignificantes alguns ministros que são do próprio Partido dos Trabalhadores.

O quadro político brasileiro tem mudado com muita rapidez nos últimos tempos, e é possível lobrigar nisso uma característica passível de repetir-se em eleições futuras. A força da falange que levou Lula à vitória minguou a olhos vistos na eleição municipal, com devastadoras derrotas em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e em muitos outros pólos eleitorais igualmente relevantes, como Salvador, Goiânia, Florianópolis, Joinville, Caxias do Sul, Pelotas e outros.

A falta desse cacife vai cobrar preço elevado na próxima eleição presidencial, até porque Lula, candidatíssimo à reeleição, terá de começar tudo de novo nessas cidades, ao concentrar sua capacidade carismática no renascimento do PT, sem ter, nesse momento pelo menos, argumentos sólidos que demonstrem ganhos sociais mensuráveis de sua administração, ou na mais devastadora das hipóteses, buscando confirmar sua posição na atração dos oportunistas que ainda lhe torcem o nariz, mas que decerto não resistirão a uma boa cornucópia.

Agindo como companheiro mal-agradecido, o PMDB que tanto aprecia as vantagens de ser governo, e provou isso tantas vezes, atordoado com as derrotas municipais e na antevisão de pior futuro, pelo resquício de comprometimento com o patrimônio de Ulisses, Teotônio e Pedroso Horta – hoje é impossível crer que o partido tenha contado com homens dessa estirpe -, assinala a intenção de pular fora do navio antes que o mesmo afunde, mesmo sob o risco de afogamento.

O PMDB está acostumado a situações limite. O elemento em que vicejaram suas inclinações e preferências, nos últimos tempos, tem sido tão inconsistente quanto um lençol de areia movediça. Talvez, com a retirada do P de sua sigla, outra medida cosmética que se apregoa, venha o antigo partido-ônibus (a melhor contribuição de FHC ao anedotário político brasileiro), proceder a reengenharia de suas intenções reais, ou assumir, vez que lhe cabe à perfeição a carapuça tecida por Tchecov: "Não é por culpa do espelho que tens a cara errada".

Ivan Schmidt é jornalista.