A globalização das perdas

Ivan Schmidt

Mais um ano chega ao fim, sem que as gritantes diferenças sociais que dividem a humanidade entre dois blocos, essencialmente antagônicos, tivessem sofrido alguma correção para melhor. Persistem a minoria muito rica e a maioria pobre ou muito pobre, tendo entre si a classe média cada vez mais achatada em seu poder aquisitivo, vendo distanciar-se mais e mais o sonho da pequena burguesia, que é simbolizado pelo ter, a qualquer custo.

Mesmo que os políticos brasileiros, que sempre usaram os números da miséria para enaltecer os programas sociais de seus partidos, de uns tempos a essa data, passassem a achar que tais números tenham sido inflados – ou seja, o diabo não é tão feio como pintam -, o fato a lamentar é que as providências para modificar o quadro de sofrimento crônico de milhões de pessoas tardam a aparecer.

Na verdade, esse débito grandioso que não foi assumido pelos atuais governantes, é bom repetir, talvez jamais venha a ser resgatado, porque existe no fulcro do tratado geral dos sistemas que governam o mundo um dispositivo que simplesmente desconsidera as maiorias pobres, tanto faz que se representem por multidões famintas, doentes, sem teto, escola e emprego digno, ou países que têm a desventura de situar-se em geografia periférica do ponto de vista político, social e econômico, perfidamente enquadrada pelo Primeiro Mundo na visão neodarwinista dos menos aptos à sobrevivência.

Como escreveu, certa vez, o arguto pensador francês George Bataille, o que é apropriado pelos ricos é perda irreversível das camadas necessitadas da população, e tal desequilíbrio tem-se tornado evidente a cada ano, sobretudo em país tão espetacular quanto estruturalmente injusto como o nosso. Dia desses, cronista do quotidiano nacional lembrava a frase do ditador Garrastazu Médici ("A economia vai bem, mas o povo vai mal"), cristalino emblema do longo período em que as soluções prováveis situam-se a infinita distância do alcance da massa.

Não se pode, em sã consciência, descarregar sobre a globalização a gama de impropérios pela situação de penúria vivida pela maioria do povo, que jamais viu processo de transferência de renda tão voraz como o atual, em que o salário por inteiro – em poucas horas – é carreado compulsoriamente para meia dúzia de pretensos credores, dentre os quais os mais notórios são o governo e seus parceiros da privatização, cujas tarifas ascendentes são o primeiro fator da corrosão dos ganhos do trabalhador, além do supermercado, mensalidades escolares, planos de saúde, seguros e outros badulaques sugeridos pelo consumismo.

A globalização é fenômeno recente, embora, desde sempre, pela perspicácia dos formuladores de suas idéias dominantes, tenha tido nomenclaturas outras que, no entanto, nunca ocultaram sua face vil: o colonialismo. A máscara de ferro imposta sobre a maioria da sociedade, e esse é mero indício de quão ambígua pode ser a expressão, antecede à globalização até porque perpetua o direito hereditário assaz questionável e iníquo que a plutocracia se arroga de auferir altos lucros, como prêmio à prerrogativa de já possuir toda a riqueza.

É oportuno pensar no que disse o sociólogo polonês Zigmunt Bauman: "Quando um ser humano sofre indignidade, miséria ou dor, não podemos ter certeza de nossa inocência moral. Não podemos declarar que não sabíamos, nem estar seguros de que nada deve mudar em nossa conduta para impedir, ou, pelo menos, aliviar a sorte de quem sofre. Pode ser que individualmente sejamos impotentes, porém, unidos podíamos fazer alguma coisa". Edificante leitura para um final de ano em que a perda gradativa do sentimento de solidariedade parece ter chegado ao ponto de não-retorno.

A propósito, no final de janeiro volta a reunir-se em Porto Alegre, provavelmente pela última vez naquela cidade, o Fórum Social Mundial, para mais uma vez bradar que um novo mundo é possível. Mesmo com a predominância de "estadistas" tipo Bush, Blair, Berlusconi, Sharon, Putin e Chirac, que com poucas palavras podem fazer do planeta uma horrenda cena apocalíptica. Terríveis palavras para uma véspera de Natal.

Ivan Schmidt é jornalista.