2005, ano mágico

Gaudêncio Torquato

Um governo de quatro anos costuma receber duas leituras. Uma, de natureza endógena, é feita pelos atores do palco administrativo, a começar pelo presidente da República. A outra é exógena e abriga as interpretações de grupos e instituições da sociedade, como a imprensa. A concordância que eventualmente possa existir entre elas diz mais respeito às características dos ciclos governamentais do que às ações desenvolvidas. Nesse sentido, a sociedade é condescendente com o governo no primeiro ano, começa a cobrar resultados no segundo, acentua as críticas no terceiro e toma posições favoráveis ou desfavoráveis no último ano da administração, quando joga nas urnas seu veredicto. Da parte do governo, o primeiro ano é para reconhecimento da casa, ocupação de espaços e fixação de estacas administrativas; o segundo é o de ajustes na máquina, apresentação dos primeiros resultados e consolidação de programas; o terceiro se destina a apresentar grandes trunfos, que serão ampliados e trombeteados no quarto ano, ocasião em que o governante corre o país para colher os louros.

Tanto na visão administrativa quanto na radiografia feita pela sociedade, o terceiro ano constitui período decisivo para se arrumar as condições que viabilizem um segundo mandato. Desse modo, 2005 será o ano de "vida ou morte" para Luiz Inácio Lula da Silva. Vamos aos argumentos. Os resultados tão ansiados pelos conjuntos sociais, até o momento, foram bem inferiores aos planejados. O que significará maior pressão na última metade do mandato. As demandas de setores organizados apontam para a efervescência de pressões, a partir do primeiro trimestre do próximo ano, não se descartando a hipótese de grandes focos de tensão no campo e forte mobilização em pólos urbanos. E, fechando a idéia, mesmo misturando seu sangue, que considerava azul, com outros menos nobres – na forma de alianças políticas inimagináveis – o PT conseguiu o feito de dividir o país em dois pedaços: um, que o ama, e outro, que o detesta. São essas as vertentes que marcarão os espaços políticos e sociais de 2005.

O paradoxo estará no centro do debate. O Brasil está chegando ao final de 2004 com projeção de expansão econômica em torno de 5% e índices de desemprego em queda. Se o Produto Nacional Bruto da Economia fosse indicador exclusivo da performance governamental, Lula abriria o ano viajando em céu de brigadeiro. Mas há um outro Produto Nacional Bruto, que é o da Felicidade, a se considerar na equação social e é este que conta na hora do "vamos ver quem vai levar a melhor". A relação entre os dois PNBs é óbvia. Economia sadia é condição sine qua para a animação dos corpos sociais. Até o presente, porém, os efeitos da política macroeconômica, os bons índices das exportações, a força do agronegócio e o tal superávit fiscal, entre outros fatores que expressam a fortaleza do atual governo, não se traduziram em segurança para a população, remédios nos postos de saúde, alimentos e transportes mais baratos, menos congestionamentos, menos buracos nas estradas, menor taxa de corrupção, menos crianças jogando bolinhas em frente dos carros, enfim, mais felicidade nacional bruta.

Ao contrário, a sensação de que o Iraque está chegando perto do Brasil é intensa, bastando ligar a TV para vermos o matraquear de tiros de metralhadoras iluminando os céus das noites cariocas. A sensação é a de que um Estado sem ordem aprofunda tentáculos, na esteira da irresponsabilidade de políticos que vendem votos em comissões de inquérito e de governantes que fazem obras improvisadas. Não é de esperar, portanto, horizontes claros em 2005. Se Palocci afirma que está "feliz" e vendo Lula "cantar" pelo alto crescimento do PIB, é aconselhável que ouça o tom das ruas. A não ser que consiga puxar da cartola da economia coelhos suficientes para encantar todas as classes sociais.

Os empuxos advirão tanto na direção centrípeta quanto na direção centrífuga. Das margens para o centro, estará agitando bandeiras, enxadas (e, quem sabe, outras coisas), o MST. O movimento avisa que abril de 2005 será o mais vermelho de sua história. O aparato policial do país, queixoso, poderá escancarar o fluxo centrífugo. Polícias militares e civis se preparam para a reivindicação de melhores salários. Na Polícia Federal, focos de insatisfação se ampliam, deixando ver a divisão política entre núcleos. Militares das três forças esperam que, na abertura do ano, negociações por reajustes sejam retomadas. Grupos de sem teto prometem continuar ocupando prédios. As classes médias não se calarão ante a perda de poder aquisitivo.

A administração dos conflitos deverá tomar grande tempo da administração federal. Tempo que será evidentemente subtraído de espaços de planejamento e execução de tarefas. Outro grande buraco na peneira da administração a ser tapado é o da burocracia, desmedida nos últimos tempos em função da paranóia petista de multiplicar diagnósticos, reuniões, encontros e papéis. Como se pode deduzir, para Lula e seu governo, 2005 será o Ano Mágico, epíteto adequado para expressar a difícil tarefa de chupar cana e assoviar ao mesmo tempo.

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político.