No final de setembro, quando o frio deu uma folga marquei um almoço com o Seu Juarez. Fiquei esperando por ele em frente ao café da Boca Maldita e mesmo de longe pude reconhecer sua figura. A boina de couro preta, os óculos e o bigode branco pareciam que formavam uma máscara da sua fisionomia nos últimos anos. Notei que trazia um embrulho em uma das mãos.
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Quando chegou mais perto, percebi com assombro que o “embrulho” era uma luva de couro cru. Seu Juarez exibia a mão direita com a luva todo sorridente. Eu perguntei por que usar luva só em uma mão e com um calor daqueles? A resposta foi surpreendente: “Esta aqui é a mão para cumprimentar políticos”, disse com ar matreiro.

Tive que admitir que a piada era boa. Seu Juarez disse que apenas dois candidatos seguraram a sua mão com a luva, mas não revelou quem eram os tais. Os outros riram e preferiram só acenar para ele.

De uns tempos para cá, Seu Juarez anda com ojeriza de política, mas ao mesmo tempo está muito preocupado com a disseminação de doenças. Dengue, Ebola, Febre Chikingunya estão por aí e assustam qualquer um, ainda mais o alarmado Seu Juarez.

No trajeto para o restaurante, Seu Juarez tirou a luva e deixou de bancar Michael Jackson. Se bem que para o meu alívio a luva que ele usava não era bordada com cristais Swarovski como a do Rei do Pop. No restaurante, Seu Juarez quis logo lavar as mãos. Eu não consegui escapar de lavar as minhas, mesmo argumentando que havia acabado de fazer isso.

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Na fila do buffet, tive a confirmação de que a neura do Seu Juarez estava passando dos limites. Um amigo (cujo nome prefiro não revelar), estava no restaurante e veio me cumprimentar. Como de hábito quando estou com outra pessoa, apresentei-o ao Seu Juarez. O cidadão todo cordial estendeu a mão e disse: “Muito prazer”. Seu Juarez respondeu ao cumprimento, mas deixou o cara com a mão no ar e cometeu um sincericídio: “Pode ir recolhendo esta mão porque eu acabei de lavar as minhas e desinfetei com álcool”, disse. O amigo pediu desculpas e desistiu do cumprimento e eu fiquei com cara de tacho.

Seu Juarez pelo visto achava que não tinha dito nada demais. Sentou-se à mesa e tratou de “bater” o prato. Entre uma garfada e outra, ele contou histórias divertidas de pescarias. Eu ouvia e ficava pensando se aquele temperamento meio bipolar era coisa da idade, porque eu não quero ficar assim quando envelhecer.

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A mania dele por higiene me trouxe à memória uma entrevista que li este ano com a diretora do Centro de Informação sobre a Água em Paris, Marylis Macé. A reportagem abordava a fama de sujos dos franceses. A matéria citava que o cheiro do metrô de Paris denuncia que o pessoal ali não é muito chegado a um banho. E de fato, uma pesquisa feita por um instituto francês aponta que apenas 20% da população toma banho a cada dois dias e 3,5% se lava apenas no fim de semana.

Segundo Marylis Macé, os franceses brigaram com a água por razões históricas. Na Antiguidade, os romanos difundiram as termas aos europeus, as famosas casas de banho. Mas na Idade Média, a Igreja Católica mandou fechá-las, já que quase todas as termas eram frequentadas por homens e mulheres e consideradas locais de prostituição.

Como exagero pouco é bobagem, incutiu-se na cabeça das pessoas que o banho nu era um incentivo à masturbação, assim também como mergulhar o corpo nu na água era tido como atitude pagã. A França só fez as pazes com a água a partir de 1850, depois que foi assolada com uma epidemia de Cólera.

Atualmente, a relação deles com a água continua meio estremecida porque só 20% dos franceses lavam as mãos antes das refeições e maioria vai ao banheiro e não faz o pit stop obrigatório na torneira. Na entrevista Marylis Macé conta que esteve recentemente no Brasil e ficou maravilhada com a noção de higiene da popula,ção, mesmo nas camadas mais pobres. Ela até comentou: “São os franceses que se lavam pouco ou os outros que se lavam muito?”.

Preferi não levar o dilema dos franceses para o Seu Juarez. Pensei em me despedir dele como fazem os povos do Sul da Ásia, juntando as mãos e inclinando a cabeça, sem esquecer-se do “Namastê”, mas achei que soaria como deboche. À sua maneira, Seu Juarez resolveu a situação. Já com a luva na mão direita, prestou continência e disse: “Até qualquer dia!”.