O susto do Seu Toninho e as rezas de aluguel

Quem me conhece sabe que não sou de viver perigosamente. Mesmo assim já estive perto da morte duas vezes. Na primeira delas quando contrai tifo na infância. Se não fosse pela dedicada equipe médica do Hospital 26 de Outubro e pelas preces fervorosas da minha mãe, que só arredava o pé da cama do hospital para ir trabalhar, não sei se teria escapado.

Da outra vez, quase me despedi do mundo quando fui cumprimentar um amigo. Amigo não, conhecido! Estava caminhando pela Avenida Sete de Setembro numa tarde quente de verão, quando vi alguns metros adiante, do outro lado da rua, o Seu Toninho Pequeno. Não havia dúvida, era ele mesmo: o cabelo preto, embora já tivesse na casa dos 60 anos, denunciava a descendência indígena. Ele os mantinha sempre penteados para trás. Os óculos escuros degradê também eram inconfundíveis. Assim como o estilo de vestir (calça social, camisa de mangas curtas e sapato preto). Na mão esquerda uma volumosa capanga e a direita segurava um cigarro.

Ele caminhava preocupado dando suas baforadas e eu decidi ir cumprimentá-lo. Apressei um pouco o  passo e num instante o alcancei. Dei um tapa de leve no seu ombro e fiz a saudação: “E daí, Seu Toninho!”

O homem largou o cigarro, fechou os olhos e começou a dar uns pulinhos, ao mesmo tempo em que dizia sem parar “ai, ai, ai”. Aquela “dança” era puro desespero e só piorava à medida em que ele tentava tirar alguma coisa da capanga e não conseguia. Sinceramente, fiquei estático assistindo a cena. Achei que ele fosse ter um troço. De repente ele me olhou e disse: “É você menino? Quase me mata de susto”.

O rosto do Seu Toninho Pequeno estava transtornado. Ele ficou totalmente sem ação, tanto que esqueceu a capanga aberta e assim pude ver o que ele tentava tirar dela: um 38 carregado, que para minha sorte entalou. Quando vi aquilo, me despedi e fui embora. Olhei para trás e vi que ele ainda estava lá parado, beijando os patuás que trazia no pescoço.

Dias depois encontrei o Seu Toninho em uma imobiliária, onde por sinal nos conhecemos há algum tempo atrás. Eu sempre ia lá para visitar a Marisol, que era a recepcionista. O homem veio me cumprimentar sorridente, mostrando seus dentes de ouro, como se nada tivesse acontecido. Eu também não comentei o episódio porque tinha certeza que aquela arma não era para mim. O que Seu Toninho esperava? Um matador de aluguel? Fiquei sem saber.

Não era para ver a bela Marisol que Seu Toninho frequentava a imobiliária. Logo que chegou da Bahia e se estabeleceu na cidade, ele se tornou amigo dos dois sócios. Mais tarde vim saber que na verdade ele era consultor espiritual de negócios. Na década de 1980, as transações imobiliárias não estavam aquela maravilha e os sócios lançavam mão das rezas do Seu Toninho para dar um empurrão nas vendas.

Às vezes as sessões espirituais na imobiliária pegavam fogo. Em certa ocasião, Marisol me contou que Seu Toninho surtou. Ficou transformado, com uma força descomunal e ninguém conseguia segurá-lo. Em dado momento ele pegou um rosário comprido, daqueles com contas trabalhadas, e usou como chicote em todos os presentes. Até os sócios da imobiliária foram açoitados. No outro dia, todo mundo foi trabalhar com o rosto cortado, marcados pela surra aplicada pelo Seu Toninho.

Certa vez fui “bater o ponto” na imobiliária e quando cheguei Marisol estava conversando com uma mulher loura, muito atraente. Era jovem, alta, uns trinta e poucos anos. Logo elas me envolveram na conversa e ficamos ali batendo papo. O que me chamou a atenção foi a classe daquela mulher. Ela olhava o interlocutor nos olhos com uma expressão amistosa, enquanto fumava calmamente. Quando falava, era sempre para deixar a conversa fluir, nunca para dar opinião contrária ou para contar vantagem com outra história “mais interessante”. Era uma criatura adorável.

Nosso agradável bate papo foi interrompido com a chegada dos sócios da imobiliária e Seu Toninho Pequeno. Eles nos cumprimentaram efusivamente. Então Seu Toninho se dirigiu à moça loira: “Vamos”, disse, com ar de cumplicidade. Ela se levantou ,se despediu de todos e saiu enganchada com o pequeno homem. Ainda dava para vê-los pela porta de vidro, mas não aguentei e cobrei da Marisol: “Eles se conhecem?”, questionei. Ela respondeu: “Você não sabia? Esta é a esposa do Seu Toninho”. Fiquei atordoado e sem palavras. Pensei comigo que dessa vez foi o Seu Toninho que me deu um susto.