O olhar hipnotizante do Professor Lot

Na singela banca de sebo da praça central, uma figura destoava daquele cenário. Era um homem de meia idade, cabelos meio grisalhos cuidadosamente penteados, roupas perfeitamente alinhadas com o frio da estação. A sobriedade do estilo fazia-no parecer um lorde inglês.

Paulo Serra já o tinha visto vagando pelo centro da cidade. Aquele rosto era inconfundível. A expressão séria, impenetrável. Os olhos pareciam enxergar a alma quando fitavam o interlocutor, o que provocava vivo desconforto em quem o encarava. Paulo Serra é meu amigo desde a infância e estava naquela fase de procurar a Iluminação, o Nirvana, o mais alto dos Céus e tudo que tivesse um remoto significado que poderia conduzir a uma centelha disso, para ele era digno de investimento.

Ele já havia saído do seminário diocesano e volta e meia a conversa caía em metafísica. Certa vez eu lhe disse que se estava mesmo interessado em aprender coisas que se dedicasse à leitura. E ele retrucou meio mal educado: “E desde quando a salvação foi escrita por homens?”

Eu achava que ele tinha razão em parte, porque se depender do ser humano é mais fácil ele se enterrar em idiossincrasias. E Paulo lia bastante. Aquela frase representava a frustração por ele não conseguir satisfazer a sua obsessão.

Talvez por isso, ele passou a frequentar a banquinha de sebo da praça central, muito embora os títulos dos livros não lhe interessassem em absoluto. Estudos de zoologia e botânica de autores desconhecidos e os títulos levavam a crer que aqueles pesquisadores não queriam chegar a lugar nenhum.

Paulo contou que o rapaz que cuidava da banca era muito atencioso. Ele percebeu que aquele comportamento era mais do que bons modos. Na verdade representava uma filosofia de vida. Um dia o tal rapaz revelou que fazia parte de um grupo de estudos de filosofia e convidou Paulo para uma palestra que estava marcada para o final de semana. Paulo aceitou de pronto e quis logo saber a que corrente pertenciam. O rapaz sorriu e disse que eles não se limitavam a faccionar a filosofia, enxergavam-na como um todo.

Paulo se definia como gramsciano, seguidor de Antônio Gramsci, gostava de ser visto como combativo, de esquerda. Eu achava que ele fazia mesmo uma salada desgraçada, mas preferia não comentar. Ele me convidou para ir à palestra. Tratei de me esquivar. “Olha, parece que é um grupo fechado e eles convidaram você”, argumentei. Paulo aceitou numa boa.

Dias depois encontrei Paulo. Estava um pouco abatido. Quis saber logo como foi a palestra. E ele me contou que quem dirigiu os trabalhos foi o misterioso cavalheiro bem vestido que circulava pela banca de sebo. Perguntei como ele se chamava e Paulo me disse que todos o tratavam como Professor Lot.

Paulo estava maravilhado, disse que o homem era um mestre em oratória. O Professor Lot alertou que a humanidade estava assistindo ao fim de um Dia Sideral. E que agora iria começar a Noite Sideral. Não aguentei e atalhei a narrativa: “Pode parar por aí, eles são apocalípticos?” Paulo relutou um pouco: “É, mais ou menos”, disse.
Depois ele quis consertar. Disse que aquilo era um reforço de linguagem para dizer que era preciso fazer algo. “Fazer o quê?”, insisti. Paulo ficou meio sem graça, mas depois resolveu abrir. “Eles querem formar uma sociedade autônoma, isolada de tudo e de todos”. Eu já sabia a resposta, mas não quis jogar água no chope do meu amigo. Paulo disse também que ao final da explanação foi servido um coquetel e eu pensei que finalmente aquele papo estava ficando interessante.

Mas que nada. Paulo explicou que havia um recipiente enorme com chá de maçã e cravos da Índia. Diz ele que o cheiro era muito bom. Para acompanhar serviram umas bolachinhas artesanais. Paulo tomou vários copos de chá e depois disse que não se sentiu muito bem. “Como assim?”, perguntei. “Vomitei a noite inteira”, disse Paulo. Eu não acreditava naquilo.

Perguntei se ele pretendia voltar lá. Paulo disse que estava decidido a assumir aquela vida e desistir das coisas mundanas. “Então está tudo certo porque eles já começar,am a te ‘purificar’”, disse-lhe. Paulo ficou assustado como se não estivesse entendendo. Fui além: “O vômito, alguma coisa no coquetel provocou este efeito limpeza”, expliquei. Paulo ficou nervoso, queria processar e o escambau. Mas depois desistiu porque ficou com medo de ser perseguido. Eu perguntei o que ele temia e ele respondeu: “O professor Lot”. Melhor não contrariar!