Estela e a pergunta que não quer calar

“O que você quer de ficar casada com um cara feio como eu, Estela?”. Ela recitou a frase meio sem jeito. Apertava as mãos empoleirada numa banqueta, enquanto aguardava o café expresso na lanchonete do Angeloni. Eu ouvia tudo meio contrafeito. Estela foi minha amiga de escola, andava comigo a tiracolo no Senador Correia. As professoras sempre perguntavam se éramos irmãos. Eu só balançava a cabeça negativamente muito de leve. Tinha medo de magoar a minha amiga que todos os dias passava na minha casa para irmos juntos para a escola. Vocês sabem o quanto as mães valorizam isso.

Fiquei com esta dívida de gratidão com Estela. E agora décadas depois, por ironia do destino moramos próximos. Cada um seguiu seu caminho, constituiu família, mas de uns tempos para cá Estela tem se mostrado um pouco aflita. Eu já sabia ou pelo menos deduzia. Já tinha ouvido a frase que tanto incomodava Estela, assim como havia presenciado o momento em que ela foi dita.

Não é que Estela não se lembrasse da minha presença. Ela não me viu. Era véspera do Natal de 2013 e eu saí no meio tarde para dar uma volta com meu filho. Passamos pela casa de Estela, e da calçada, eu a vi na varanda com o marido. Ela usava um vestido jeans sem manga, uma de suas mãos segurava o queixo, se apoiando no parapeito, olhos fixos mirando o vazio enquanto o sujeito largou a bomba: “O que você quer de ficar casada com um cara feio como eu, Estela?”. Ele segurava um cigarro já quase no filtro entre dedos e uma lata de cerveja na outra mão.

No parapeito da varanda da velha casa várias latas vazias descansavam, um prenúncio de como seria o Natal. Eu e o meu filho passamos incógnitos, acredito que em parte pela gravidade do momento e também porque meu filho, normalmente barulhento, se manteve quietinho absorto nas suas questões infantis.

Estela sorveu o café e largou a pergunta: “O que eu faço?”. Que situação, pensei. Quis perguntar se ela havia respondido à inquisição do marido, mas preferi não piorar as coisas. Ela já havia dito que ficou muito contrariada quando sugeriu que o marido fosse passear com os filhos em um domingo depois do almoço. “Depois do almoço eu vou ver futebol na TV e tomar cerveja”, respondeu o sujeito. Estela estava muito triste e esperava que eu a ajudasse. Ela se formou como assistente social, mas não conseguiu atuar. Teve que se dedicar à família (dois filhos), que agora ameaçava desmoronar e arrastá-la junto.

Não saí pela tangente, afinal Estela não merecia. “Não posso dizer o que você deve fazer. Cabe a você decidir. Mas posso ouvi-la”, disse. Pelo jeito que me olhou, ela esperava mais. Estela sabia o que fazer. O que ela queria era um salvo-conduto para legitimar o seu plano. Não pensava em ruptura, faltava-lhe a segurança financeira para enfrentar sozinha o problema, tendo ainda dois filhos para criar. Ela estava inclinada em dar mais uma chance para o sujeito e torcer pelo melhor. Era uma posição comodista, mas não me atreveria a detonar seu projeto sem nada em troca para ofertar.

O tempo estava acabando e eu tinha que trabalhar, então decidi ir direto ao ponto. Disse a ela que a questão não era de respostas, mas de fazer perguntas. Ela me interrompeu: “Ele não aceita o diálogo”. Eu respondi que não era só com ele, mas com ela também. Coloquei as cartas na mesa: “Você já parou para pensar o que você quer com esta relação? Até onde você quer ir com isso?”, provoquei.

Quando ela quis balbuciar alguma coisa eu a interrompi: “Pense e responda primeiro para você mesma”! Felizmente ela não chorou. Ao menos na minha frente ela se conteve. Nos despedimos, ela foi fazer às compras e eu tomei o rumo do jornal pensando que aquele que consegue resolver problemas de relacionamento resolve a vida, porque tudo é alicerçado em relações, na vida pessoal ou profissional. Mas mundo perfeito não existe, nem nas novelas. Estes dias vi Estela de novo. Estava de costas varrendo as folhas caídas do jardim. Como eu estava do outro lado da rua, ela não me viu novamente. Dessa vez foi o trânsito pesado da rua que me deixou invisível.