Seu Belarmino não estava muito a fim a de sair do hospital. Ele havia passado por duas cirurgias: uma para retirar a vesícula e outra para corrigir uma hérnia. Tudo o que eu sabia era que ele não era um paciente institucionalizado, desses que a família abandona no hospital como existem aos montes por aí.

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Não era o caso. A esposa do Seu Belarmino estava lá firme e forte, chegou a dormir numa poltrona para não deixar o seu velho sozinho. Estávamos em seis naquela enfermaria, mas a população era flutuante. À medida que uns recebiam alta outros chegavam. Ali era o reduto da vesícula, se bem que no dia em que cheguei havia dois “intrusos”, um infartado e outro paciente que fez cirurgia das varizes.
Fui conduzido até a enfermaria às 05 da manhã, um exagero já que a laparoscopia e a correção de uma hérnia umbilical estavam marcadas para às 09 horas. Que o digam os que já estavam internados que tiveram que despertar tão cedo. Chegamos eu e o Seu Lauro, um senhor que conheci na recepção, e acordamos todo mundo pelos modos nada sutil da enfermeira. Seu Berlamino mal se deu conta do alvoroço, só virou do outro lado na cama e puxou o ronco.

Seu Lauro, um descendente de polonês, logo fez amizade com todo mundo. Ele contou que lutava contra uma hérnia dessas de respeito. Eu não entendo nada disso, mas fiquei impressionado quando ele disse que para tossir precisava ficar deitado de lado e pedalar com uma perna, como se estivesse tentando fazer pegar uma moto. Tudo isso para minimizar a dor. Mas finalmente ele tomou coragem e estava ali para se libertar da sua carrasca. Todos nós encorajamos o Seu Lauro, menos o Seu Belarmino, que continuava nos braços de Morfeu.
Seu Lauro foi antes para o centro cirúrgico, às 07h30. Eu fui às 09h como haviam anunciado, mas voltei antes dele. Dormi por uns quarenta minutos por causa dos efeitos da anestesia e logo que despertei fui informado pelos outros que Seu Lauro havia voltado a pouco da cirurgia e que se queixava de muitas dores.

Até o Seu Belarmino já estava a par do estado dele. Entretanto, naquele momento ele se empenhava em tentar fazer a esposa ir para casa. “Por que você quer que eu vá? Fazer o que lá sozinha?”, questionou a mulher. Seu Belarmino revelou seu plano: “Vai lá ajeitar a casa, preparar uma costela assada”. Quase não teve tempo de terminar de falar, porque a diligente senhora lembrou-o que sem a vesícula ele não podia mais comer gorduras. E foi o fim da discussão. A esposa só foi embora no final da tarde.

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Eu assistia a tudo isso quieto no meu canto enquanto lia a biografia de Abraham Lincoln. Como os pacientes e as enfermeiras começaram a me olhar como seu eu fosse um ET, tratei de fazer intervalos regulares na leitura para trocar ideias com eles.

Seu Lauro despertou lá pelas 14h, estava abatido e reclamando de dores, muito embora estivesse recebendo todas as medicações. Uma hora depois, quando chegaram seus parentes para visita, ele levantou da cama e tentou por a roupa. Parecia que queria ir embora com eles. Quando quis pôr a calça desabou na cama de tanta de dor. E desabafou: “O ser humano é uma porcaria mesmo, qualquer cortezinho já fica inútil”, ao mesmo tempo em que expressão no seu rosto demonstrava todo o sofrimento.

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Não adiantaram os apelos das enfermeiras para que Seu Lauro ficasse quieto. À noite, no mesmo dia em que foi operado ele foi embora. Sofreu horrores para se vestir, mas quando a esposa dele chegou para buscá-lo, levantou-se de um salto da cadeira, como se fosse um guri novo, despediu- se e foi embora. A esposa e a sogra do homem infartado que presenciaram tudo também estranharam o comportamento do Seu Lauro e uma comentou a com a outra: “Nossa, o homem ficou o dia inteiro se contorcendo de dor, mas bastou a mulher dele chegar e já saiu pulando parecendo um potro novo”.

Eu fui liberado pelo médico na manhã seguinte. Ao contrário do Seu Lauro, Seu Belarmino não era ansioso e ficou no hospital. Ele havia acabado de tomar café e disse que só iria para casa depois que o médico viesse pessoalmente lhe dar alta. Mal apertou a minha mão e já mergulhou na cama novamente. Pensei comigo que ele devia estar gostando de ser, mimado naquele “hotelzão”.