A pirâmide e o povo de bronze

Graciliano comprou uma pirâmide. Ele não foi engambelado por um golpista que o fez arrematar uma das maravilhas do mundo antigo. Nada disso. A pirâmide que ele comprou era aquela de montar, feita de hastes de metal que existem em lojas de artigos místicos e esotéricos.

Quando perguntaram o que ele queria com aquilo, Graciliano deu um sorriso enigmático e disse: “Vou viajar”. E não falou mais nada aos pobres e curiosos mortais. O pessoal da gráfica onde Graciliano trabalhava ficou quebrando a cabeça tentando imaginar o que ele havia descoberto que eles não sabiam, mas teriam que esperar o final de semana para saber o que viria dali.

Graciliano era bem quisto ali. O único senão era a sua paixão de falar sem parar sobre vida extraterrena. Ele colecionava revistas especializadas e derramava teses e mais teses sobre ETs e contatos imediatos. Por isso o pessoal que vivia mais preocupado com os aumentos da gasolina, da tarifa de ônibus e dos preços do supermercado, achava que ele vivia no mundo da lua.

Na segunda-feira Graciliano contou uma história incrível. Como morava sozinho, disse que chegou em casa e montou a dita pirâmide sem nenhuma dificuldade. Depois colocou o artefato no meio da sala, entrou e sentou em posição de lótus, fechou os olhos e deixou a mente divagar. Nos primeiros minutos nada aconteceu, mas à medida que ficou mais relaxado começou a sentir um vento no rosto. Aquilo era muito estranho porque a casa estava toda fechada. Graciliano disse que não era uma brisa, mas vento forte como se estivesse andando de moto a toda velocidade.

O pessoal ouvia com interesse, mas tinha gente que fazia cara de paisagem como quem diz: “Mais uma do lunático”. O melhor estava por vir. Graciliano disse que chegou a um planeta, num sistema distante anos-luz do nosso e encontrou um povo cor de bronze. Eram diferentes em tudo de nós, mas dava para perceber que eram amistosos. E o mais interessante: também eram religiosos. A esta altura, tinha gente que achava que Graciliano estava bebendo demais ou usando outras substâncias proibidas.

Embora Graciliano estivesse feliz com a experiência, ele manifestou desapontamento por não ter conseguido mapear onde ficava o tal planeta. Aconselharam-no a entrar na pirâmide e tentar viajar de novo, desta vez levando um gravador para documentar a experiência. Ele disse que bem que tentou, mas a dita cuja não “decolou”. “Acho que é ansiedade que não deixa”, arriscou.

No caminho de casa Graciliano ia devagar pensando uma forma para reencontrar o povo de bronze. Para tentar relaxar, resolveu visitar um sebo perto dos Correios. Não encontrou nenhuma revista nova sobre OVNIs, mas viu na cesta da liquidação um livro que lhe chamou a atenção: “Rumo às estrelas”. Abriu-o e a dedicatória dizia: “Aos espíritos desbravadores, aqueles que aspiram ao inverno sideral”. Não precisou de mais nada. Graciliano comprou e devorou o livro.

Leu muito rápido as 115 páginas e ficou muito desapontado. O livro era um festival de metáforas e martelava na questão de aquietar a mente até que finalmente o indivíduo não pensasse em nada, etc. Um desafio e tanto para qualquer um ainda mais para Graciliano, cujos pensamentos pareciam macacos no cio, saltando de galho em galho e fazendo mil estripulias. Ele olhou para a pirâmide e pensou o que fazer com ela, transformá-la em cabide?

Antes de tomar uma decisão resolveu fazer uma última tentativa. Entrou na estrutura e ficou ali quieto. Nada acontecia. Lembrou que uma parte do livro falava sobre se concentrar na respiração. De repente ele percebeu que as paredes da casa estavam translúcidas e através delas dava para ver a abóboda celeste. Estava singrando o espaço preguiçosamente passando por pulsares e quasares. Podia alcançar sistemas inteiros com as mãos. Galáxias pareciam envoltas em membranas transparentes de forma que quando ele as tocava elas se modificavam, mas logo voltavam à sua forma original.

Estava gostando da brincadeira, mas aí o povo de bronze apareceu. Diziam algo, mas ele teve que fazer um esforço enorme para entender. Era uma frase curta em latim: “memento mor,i”. Significa algo como “Lembra-te que vais morrer”. Graciliano levou dias para concatenar as ideias de forma clara de novo. Faz dias que ele não aparece no trabalho. Quer saber de todo jeito como o povo de bronze aprendeu latim e o que mais eles sabem de nós.

* Miguel Ângelo de Andrade publica a coluna ‘Pelas ruas da cidade’ durante as férias de Edilson Pereira.