Igualdade entre companheiro e cônjuges na sucessão

O art. 1.790 do Código Civil, ao legislar sobre a participação dos companheiros na sucessão traz à tona diversos questionamentos face às disposições referentes à sucessão entre os cônjuges.

            Tais indagações conflitam com a disposição contida no art 226, §3º, da Constituição da República, que preconiza a igualdade material entre os institutos da união estável e do casamento.

PROPOSIÇÃO: As disposições do art. 1790, incs. II e III, do Código Civil conflitam com a necessária igualdade entre companheiros e cônjuges contida na norma constitucional estampada no art. 226, § 3º.

JUSTIFICATIVA: Necessária a interpretação teleológica e sistemática do art. 1.790 do Código Civil com o preceito constitucional do art. 226, §3º e arts. 1725 e 1829, inc. I, do Código Civil Brasileiro, pois repugnam as diferenciações trazidas pelo dispositivo legal em comento à união estável, sejam elas mais ou menos favoráveis em relação ao matrimônio. Tal aspecto já é objeto de reforma legislativa: Projeto de Lei n.º 508/2007 prevendo a supressão do artigo de lei e modificação dos arts. 544, 1.829 e ss, 1.837 e ss, 1845 e 2003, em nome da facilitação da conversão da união estável em casamento, estampada no texto constitucional. Bem resumindo a controvérsia, são as palavras de EUCLIDES DE OLIVEIRA:

 “[…] cabe frisar que nem tudo é desconfortável ao companheiro, se comparado ao cônjuge. Incompreensivelmente, o legislador, dando asas ao tratamento desigual, acabou por colocar muito acima os direitos do companheiro quando determinou que concorresse na herança com descendentes e outros parentes, na sucessão do outro, ‘sobre os bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável’. A disposição, constante do caput do citado art. 1.790, choca-se com o disposto no art. 1829, I, do Código Civil, que resguarda ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrer na herança com descendentes em condições restritas a determinados regimes de bens, com expressa exclusão para a hipótese de casamento nos regimes da comunhão universal, da separação obrigatória, ou no regime da comunhão parcial, se não houver particulares.

[…]

[…] foi limitada a participação do companheiro na herança deixada pelo outro. Sua incidência ocorre apenas sobre os bens adquiridos onerosamente durante a convivência, o que representa uma inadmissível restrição, pela vedação de acesso aos demais bens, ainda que faltem herdeiros sucessíveis. Por outro lado, significa um injustificável excesso, pois nada recomenda tenha o companheiro participação na herança em concurso com descendentes, quando já goze do direito de meação sobre os bens havidos durante o tempo de união. Basta considerar que em hipótese semelhante, o cônjuge teria apenas resguardado o seu direito de meação, sem nenhuma participação na herança (salvo o direito de habitação).

[…]

Afigura-se demasiado esse favorecimento maior do companheiro em comparação com o cônjuge, pois, além da meação sobre tais bens, tem ainda direito a percentual na herança atribuível aos descendentes ou aos ascendentes. Assim, se o autor da herança deixa um único bem adquirido onerosamente durante a convivência, um herdeiro filho e companheira, esta receberá 50% do bem pela meação e mais 25% pela concorrência na herança com o filho. Se o autor da herança fosse casado, nas mesmas condições, co cônjuge-viúvo teria direito apenas a 50% pela meação, restando igual percentagem íntegra para o herdeiro filho.

[…]

[…] o Código, no art. 1.790, ao dispor sobre a concorrência do companheiro com os descendentes do falecido, não alude o regime de bens adotado na união estável, enquanto esse fator é decisivo para admissão dos direitos concorrentes do cônjuge, (…). Para o companheiro, o regime de bens é irrelevante no plano sucessório, uma vez que o fator diferencial está, unicamente, na origem dos bens havidos pelo autor da herança, bastando que tenham sido adquiridos onerosamente durante a convivência para que se dê o direito em favor do companheiro, no concurso com os descendentes (assim como em relação aos demais parentes sucessíveis). Ora, isso, leva, de um lado, a tratamento muito mais favorável ao companheiro que ao cônjuge, pois aquele receberá sua quota na herança atribuída aos descendentes mesmo quando já recebera a meação pelo regime legal da comunhão parcial de bens. O mesmo não se dá, em tal hipótese, com o cônjuge sobrevivente, que, em sendo meeiro, não terá participação concorrente na herança com os descendentes.

[…]

São aspectos de fundamental importância no cálculo da herança atribuída ao companheiro, em confronto com aquela que receberia o cônjuge sobrevivente, revelando inadmissível falta de sintonia nos dispositivos legais. Primeiro, por dar mais vantagem ao companheiro, nos casos de participação sobre bens havidos onerosamente durante a convivência. Por que esse tratamento privilegiado? Ninguém explica, nem é possível fazê-lo, pela evidente quebra do princípio isonômico e pelo desatendimento ao preceito constitucional de proteção à família, que se supõe justa e equânime, não importa a sua origem. Além disso, vale anotar que o art. 226, §3°, da Constituição, ao determinar aquele manto protetor sobre a entidade familiar, termina por definir a necessidade de a lei facilitar a conversão da união estável em casamento. Ora, que facilitação haverá quando se sabe que o companheiro, em determinadas circunstâncias, pode vir a receber herança maior que aquela atribuível ao cônjuge? O Código se posiciona, com tal dispositivo mais favorável ao companheiro, em prol da mantença da união estável. Em vez de facilitar, o dispositivo dificulta a conversão da união estável em casamento, assim contrariando o comentado preceito constitucional.

(OLIVEIRA, Euclides de. Direito de herança – a nova ordem da sucessão. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.155/156, 160, 162 e 164/165)

(TJSP – 6804234500, 5206264300, 5982684400 e 3363924800; TJRS Ac. 2008-392655. TJPR – Inc. Decl. Inconst. n.º 536.589-9/01 e Ap. Cív. n.º 526.489-1)

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DECISÃO EM DESTAQUE

 

A matéria, inclusive, já foi debatida no Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Vejamos.

 

INCIDENTE DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 536.589-9/01, DA 18ª VARA CÍVEL DO FORO CENTRAL DA COMARCA DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA.

SUSCITANTE:           12ª CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ.

INTERESSADOS:      MARILENE CASELI PEREIRA, SYLLA HILDA VENZON E OUTROS.

RELATOR:                  DES. SÉRGIO ARENHART.


INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. SUCESSÃO DA COMPANHEIRA. ARTIGO 1.790, III, DO CÓDIGO CIVIL. INQUINADA AFRONTA AO ARTIGO 226, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, QUE CONFERE TRATAMENTO PARITÁRIO AO INSTITUTO DA UNIÃO ESTÁVEL EM RELAÇÃO AO CASAMENTO. NECESSIDADE DE MANIFESTAÇÃO DO COLENDO ÓRGÃO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE DE LEI INFRACONSTITUCIONAL DISCIPLINAR DE FORMA DIVERSA O DIREITO SUCESSÓRIO DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. ELEVAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL AO “STATUS” DE ENTIDADE FAMILIAR. INCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA. CONHECIMENTO DO INCIDENTE, DECLARADO PROCEDENTE.

1. Inconstitucionalidade do artigo 1.790, III, do Código Civil por afronta ao princípio da igualdade, já que o artigo 226, § 3º, da Constituição Federal conferiu tratamento similar aos institutos da união estável e do casamento, ambos abrangidos pelo conceito de entidade familiar e ensejadores de proteção estatal.

2. A distinção relativa aos direitos sucessórios dos companheiros viola frontalmente o princípio da igualdade material, uma vez que confere tratamento desigual àqueles que, casados ou não, mantiveram relação de afeto e companheirismo durante certo período de tempo, tendo contribuído diretamente para o desenvolvimento econômico da entidade familiar.

VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Incidente de Declaração de Inconstitucionalidade nº 536.589-9/01, da 18ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, suscitado pela 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, onde figuram como interessados MARILENE CASELI PEREIRA, SYLLA HILDA VENZON, MARTHA COSTA PAIM, IZABEL COSTA DE OLIVEIRA, ORESTES SEBASTIÃO ROCHA COSTA, MARCO AURÉLIO DE AGUIAR COSTA e VERA LÚCIA DE AGUIAR COSTA.

Trata-se de Incidente de Declaração de Inconstitucionalidade instaurado nos autos do Agravo de Instrumento nº 536.589-9, através da qual a douta 12ª CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ manifestou entendimento prévio por inclinar-se pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790, inciso III, do Código Civil, ao sustento básico de que o sobredito dispositivo legal afronta a Constituição Federal, em especial § 3º do seu artigo 226, a qual considerou a união estável entidade familiar, assim como o casamento, bem como equiparou o cônjuge ao companheiro, o que impede que a legislação infraconstitucional confira tratamento diferenciado em relação aos institutos sob análise.

A Procuradoria-Geral de Justiça pronunciou-se pelo conhecimento do incidente e, no mérito, pela sua improcedência por entender pela constitucionalidade do dispositivo legal questionado (fls. 579/602).

É o relatório

Voto.

Prima facie, de se conhecer do incidente, haja vista satisfeitos os requisitos dos arts. 480, 481 e 482 do Código de Processo Civil, que disciplinam a matéria.

Adentrando ao mérito, verifica-se que o pedido de declaração de inconstitucionalidade deve prosperar.

Compulsando os autos, depreende-se que a discussão envolve a indicada inconstitucionalidade do artigo 1.790, III, do Código Civil, com a inquinada violação do princípio da igualdade material, tendo em vista o tratamento paritário que a Constituição Federal conferiu ao casamento e à união estável, considerando ambos os institutos como entidade familiar, conforme se observa do disposto no seu artigo 226, § 3º.   

Primeiramente, importa trazer à baila a forma como o tema relativo à sucessão do cônjuge e do companheiro é tratado no atual Código Civil.

O artigo 1.829 do mencionado diploma legal confere a integralidade da herança ao cônjuge sobrevivente em caso de não existirem descendentes ou ascendentes. Vejamos:

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.” (grifei).

Já no que tange à união estável, a matéria encontra-se disciplinada no artigo 1.790 do Código Civil, o qual estabelece que, em caso de morte do(a) companheiro(a), o sobrevivente concorrerá com os demais herdeiros se inexistirem ascendentes e descendentes. Vejamos:

“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.” (grifei)

Resta claro, portanto, que o Código Civil confere tratamento diferenciado ao cônjuge e companheiro no que pertine aos direitos sucessórios, favorecendo aquele que constrói sua família através do matrimônio.

Nota-se, entretanto, que com o advento da Constituição de 1988, a noção de entidade familiar sofreu alterações substanciais, as quais não podem deixar de ser consideradas.

A Carta da República elevou a união estável ao status de entidade familiar, merecendo, tal como aquela derivada do casamento, a proteção do Estado, de acordo com o que determina o caput do seu artigo 226.

Com efeito, “a família tradicional fundada na estabilidade formal cede espaço para certa instabilidade própria de laços afetivos abertos” (FACHIN, Luiz Edson e RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Código Civil Comentado: Direito de Família. Casamento. v. 15. São Paulo: Atlas, 2003, p. 16).

Aliás, o enquadramento da união estável como entidade familiar vem expresso no artigo 226, § 3º, da Constituição Federal:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. […]

§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”

Sobre o tema, assim leciona Carmem Lúcia Silveira Ramos:

“Eliminada a antítese entre o modelo normativo familiar proposto pelo ordenamento jurídico e a realidade social, a partir do momento em que se estendeu a proteção constitucional a uma nova família, com perfil plural, traduzido não mais apenas na união matrimonializada, mas também na família monoparental, nas suas feições de comunidade formada por um dos pais e seus filhos, consangüíneos ou afetivos nos casos de adoção, e na família sem casamento, a qual adentrou o texto legal designada como união estável, seria de se esperar que fosse realizada pelos operadores jurídicos uma releitura das teses consagradas no tema das relações familiares.

Tal expectativa justifica-se diante da mudança de valores consagrados no texto da Constituição Federal, rompendo com o esquema até então vigente, tanto em matéria do tratamento atribuído à filiação fora do casamento, quando na própria estrutura da união matrimonializada, agora igualitária; tanto na proteção da família monoparental, quanto no reconhecimento da família não matrimonializada como realidade jurídica.

[…]

Ainda que se admita que a Constituição Federal atribuiu à família oriunda do casamento uma posição de privilégio, isto não deveria ser interpretado no sentido de não se estender as garantias conferidas às família matrimonializadas às demais formas de família, sejam elas monoparentais ou originadas em uniões sem casamento, eis que o perfil, protecionista neste tema, da Constituição Federal, dirige-se à família em geral, em todas as manifestações reconhecidas no seu art. 226″

(Família sem casamento: de relação existencial de fato à realidade jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 129-130).

Cumpre assinalar que muito embora a Constituição tenha ampliado o conceito de família, para fins de também abarcar aquela decorrente de união estável, bem como ter conferido maior proteção aos companheiros, o casamento e a união estável se mantêm como institutos autônomos e diferentes, o que se pode concluir do fato de a Lei Maior dispor que a conversão em casamento deve ser facilitada.

Em decorrência disso, existem tratamentos diferenciados para ambos em relação a determinadas matérias, como, por exemplo, a presunção de paternidade (art. 1.597, do CC). E tais distinções persistem em razão da segurança das relações jurídicas travadas em relação a terceiros, bem assim do fato de o casamento representar formalmente a existência de uma relação de companheirismo, título este que inexiste nas uniões estáveis.

Nada obstante isso, a distinção relativa aos direitos sucessórios dos companheiros viola frontalmente o princípio da igualdade material, uma vez que confere tratamento desigual àqueles que, casados ou não, mantiveram relação de afeto e companheirismo durante certo período de tempo, tendo contribuído diretamente para o desenvolvimento econômico da entidade familiar.

Outrossim, a legislação infraconstitucional não pode alijar tão gravemente direitos anteriormente assegurados aos partícipes de entidades familiares, in casu, o direito fundamental à herança, assegurado no artigo 5º, XXX, da Carta Constitucional.

Ademais, permitir que os herdeiros colaterais concorram para o recebimento da herança implica em manifesto enriquecimento sem causa destes, eis que quem concorre para a aquisição do acervo patrimonial ao longo da convivência é o(a) companheiro(a).

Assim sendo, irrelevante o fato de a união estar fundada no matrimônio para se concluir pela existência de esforço mútuo na arrecadação do patrimônio comum. Ora, é preciso outorgar proteção legal não apenas à família de direito, formalmente constituída, mas também à família de fato, em decorrência do princípio da equidade, mormente porque ambas são pautadas na solidariedade e no afeto, bem como dotadas de dignidade e respeito.

O Código Civil, no artigo 1.790, inciso III, confere tratamento diverso a situações similares, uma vez que condiciona o recebimento da totalidade dos bens ao companheiro na remota hipótese de inexistir qualquer parente sucessível, afrontando, assim, os princípios instituídos pela Constituição, que regem o Direito de Família.

Nesse sentido ensina Maria Berenice Dias:

“Somente na união estável existe concorrência com os parentes colaterais, porque a lei os inseriu em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, relegando o companheiro ao último lugar. Desarrazoadamente, os parentes colaterais até o quarto grau do falecido (irmãos, sobrinhos, tios, sobrinhos-netos, tios-avós e primos) herdam antes do companheiro sobrevivente, que faz jus somente ao direito de concorrer com eles. É o que diz a lei: ao companheiro é assegurada somente uma quota mínima quando concorrer com outros parentes sucessíveis (CC 1.790 III). Não importa nem quem são nem quantos são os herdeiros, sempre ficam com o dobro dos bens que foram adquiridos pelo casal durante o período de convívio.

Da forma como está posto no caput do art. 1.790, a participação do companheiro é exclusivamente sobre os aquestos: bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. No entanto, a lei muda de critério ao estabelecer o direito de concorrência com os ‘outros parentes sucessíveis’ (CC 1.790 III). Estes só podem ser colaterais. Neste caso, é garantido ao companheiro ‘um terço da herança’, ou seja, sobre todo o patrimônio, e não apenas sobre os aquestos.

Como o tratamento outorgado à união estável não pode ser mais perverso do que o imposto ao casamento, além de flagrantemente inconstitucional, o jeito é deferir o direito de concorrência sobre a totalidade do acervo sucessório. Esse entendimento é o que melhor atende ao princípio da solidariedade. No entanto, a solução que minimamente atende o (ou ao) elementar princípio ético é simplesmente abandonar este dispositivo legal e aplicar à união estável as regras que regem o direito de concorrência no casamento, apesar de sua regulamentação também deixar muito a desejar”.

(Manual das Sucessões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 181).

Assim, com o advento da Constituição Federal, a qual erigiu a união estável à categoria de entidade familiar, bem como conferiu igual proteção à da família matrimonializada, não há como se permitir tratamento tão diferenciado tal qual o instituído pelo artigo 1.790, inciso III, do Código Civil, eis que em flagrante violação do artigo 226, §3º, da Lei Maior, razão pela qual a declaração de inconstitucionalidade do referido dispositivo legal é medida que se impõe.

Esse também é o posicionamento de Fábio Ulhoa Coelho:

“Em relação ao companheiro, não se pode negar que, no plano da contribuição para a construção do patrimônio do falecido, encontra-se em pé de igualdade com o cônjuge. A mesmíssima contribuição que se presume seja dada por um cônjuge também provém daquele que convive em união estável. Não há diferença nenhuma, sob o ponto de vista da maior ou menor importância da contribuição para a construção e manutenção do patrimônio de alguém, se a relação de conjugalidade em que está envolvido funda-se no matrimônio ou na convivência duradoura, pública e destinada à constituição de família. Cônjuge e companheiro contribuem igualmente para o implemento do patrimônio da pessoa à qual estão vinculadas.

Desse modo, se o cônjuge tem se beneficiado de uma inegável valorização em sua posição na ordem de vocação hereditária, em função do reconhecimento de sua maior contribuição para a formação do patrimônio a partilhar, é inconcebível que o companheiro não possa desfrutar de igual promoção. Seria uma odiosa discriminação. O direito das sucessões, portanto, não pode diferenciar o cônjuge e o companheiro, na definição das preferências e quinhões sucessórios. Ambos devem receber da lei tratamento idêntico, porque não razões que possam justificar qualquer vantagem ou desvantagem, para um ou para outro, no momento da destinação dos bens do falecido com quem mantinham relação de conjugalidade.

O Código Civil, no entanto, tratou diferentemente a família fundada no matrimônio e a constituída por união estável. Discriminou-as, conferindo mais vantagem ora ao cônjuge, ora ao convivente. Ao fazê-lo incorreu em inconstitucionalidades que precisam ser consertadas pela tecnologia jurídica”.

(Curso de direito civil, vol. 5, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 258-259).

Ademais, aplicar o supracitado artigo 1.790 do Código Civil, além de violar as normas constitucionais em razão do tratamento paritário conferido à união estável em relação ao casamento, implica em um retrocesso em relação ao instituto e aos valores já conquistados, tais como a tutela do companheiro e da família.

Esse é o entendimento adotado pelos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Vejamos: 

“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO SUCESSÓRIO. UNIÃO ESTÁVEL. SUCESSÃO ABERTA NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. COMPANHEIRO FALECIDO SEM DESCENDENTES E ASCENDENTES. COMPANHEIRA QUE DEVE SER IGUALADA AO CÔNJUGE NA VOCAÇÃO HEREDITÁRIA. IGUALDADE DE TRATAMENTO DO CASAMENTO E DA UNIÃO ESTÁVEL, INTRODUZIDA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. APLICAÇÃO LITERAL DO ARTIGO 1.790, INCISO III, DO CÓDIGO CIVIL QUE IMPLICA ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DOS COLATERAIS EM DETRIMENTO DA COMPANHEIRA QUE CONVIVEU COM O DE CUJUS POR MAIS DE 20 (VINTE) ANOS. APELAÇÃO PROVIDA POR MAIORIA.”

(TJ/RS – 7ª CC – AC 70.030.157.820, Rel. Des. José Conrado de Souza Júnior – DJ de 22.07.2009).

“EMBARGOS INFRINGENTES. UNIÃO ESTÁVEL. SUCESSÃO. COMPANHEIRA SOBREVIVENTE. DIREITO À TOTALIDADE DA HERANÇA. EXCLUSÃO DOS COLATERAIS. INAPLICABILIDADE DO ART. 1.790, INC. III, DO CÓDIGO CIVIL. Tendo a Constituição Federal, em seu art. 226, § 3º, equiparado a união estável ao casamento, o disposto no art. 1.790, III, do Código Civil vigente colide com a norma constitucional prevista, afrontando princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, resguardados na Carta Constitucional, razão para ser negado vigência ao disposto legal. À união estável são garantidos os mesmos direitos inerentes ao casamento, efeito que se estende ao plano sucessório, mormente no caso em exame onde autora e de cujus viveram more uxorio por três décadas, obtendo o reconhecimento judicial desta união como estável aos fins da C.F. Inexistindo descendentes e ascendentes, é da companheira sobrevivente o direito à totalidade da herança, excluindo-se os parentes colaterais. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS. SUSCITADO INCIDENTE DE RESERVA DE PLENÁRIO.”

(TJ/RS – 4ª CC – EI 70.027.265.545 – Rel. Des. André Luiz Planella Villarinho – DJ de 10.07.2009).

“HERANÇA – ARROLAMENTO DE BENS – Companheira – Ausência de descendentes e ascendentes – Colaterais – Exclusão da sucessão – Não incidência do art. 1.790, III, do Código Civil – Afronta ao art. 226, § 3o, da Constituição Federal – Tratamento sucessório do companheiro sobrevivente assemelhado àquele do cônjuge – Inteligência dos artigos 1.829, III, e 1.838 do novo Código Civil – Reconhecimento do direito da companheira à totalidade da herança – Recurso provido.”

(TJ/SP – 1ª CC – AI 6.524.254.400 – Rel. Des. Vicentini Barroso – DJ de 30.06.2009).

“INVENTÁRIO – Delimitação da participação da companheira do de cujus – Não cabimento – Inciso III do art. 1790 do novo Código Civil – Dispositivo que estabeleceu inadmissível discriminação entre as famílias constituídas pelo afeto e pela convivência e as unidas pelos laços do matrimônio – Afronta à Constituição – Caracterização – Doutrina e jurisprudência – Prevalência da norma especial sobre a geral – Irmãos do de cujus que, ademais, residem no exterior e deixaram de ter contato com ele desde 1957 – Decisão revogada – Indeferida a habilitação dos agravados – Determinada a expedição de carta de adjudicação em favor da agravante – Recurso provido.”

(TJ/SP – 7ª CC – AI 6.171.254.900 – Rel. Des. Sousa Lima – DJ de 30.04.2009).

Diante de todo o exposto, o voto pela declaração da inconstitucionalidade do artigo 1.790, inciso III, do Código Civil, por flagrante e manifesta afronta ao artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, remetendo-se os autos à colenda 12ª Câmara Cível a fim de que prossiga no julgamento do Agravo de Instrumento.

ACORDAM os Excelentíssimos Senhores Desembargadores integrantes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por maioria de votos, em julgar procedente o incidente de declaração de inconstitucionalidade.

O julgamento foi presidido pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador RUY FERNANDO DE OLIVEIRA, no exercício eventual da Presidência, com voto, e dele participaram e acompanharam o voto do Relator, os Excelentíssimos Senhores Desembargadores RUY CUNHA SOBRINHO. MANASSÉS DE ALBUQUERQUE, MORAES LEITE, JOÃO KOPYTOWSKI, JORGE DE OLIVEIRA VARGAS, PAULO HABITH, EDUARDO FAGUNDES, ARNO KNOERR, OTO SPONHOLZ, TELMO CHEREM, JESUS SARRÃO, REGINA AFONSO PORTES, RUY FERNANDO DE OLIVEIRA, IVAN BORTOLETO e IDEVAN LOPES; restando vencidos os Excelentíssimos Senhores Desembargadores MARQUES CURY (com declaração de voto), LEONARDO LUSTOSA, MENDONÇA DE ANUNCIAÇÃO (com declaração de voto) e PAULO ROBERTO HAPNER. Acompanhando o Relator apresentarão declaração de voto os Excelentíssimos Senhores Desembargadores JESUS SARRÃO, JORGE DE OLIVEIRA VARGAS e PAULO HABITH.

Curitiba, 04 de dezembro de 2009.

Des. SÉRGIO ARENHART – Relator

Des. JESUS SARRÃO – com declaração de voto

Des. JORGE DE OLIVEIRA VARGAS – com declaração de voto

Des. PAULO HABITH – com declaração de voto

Des. LEONARDO LUSTOSA – Vencido

Des. MENDONÇA DE ANUNCIAÇÃO – Vencido, com declaração de voto

Des. PAULO ROBERTO HAPNER – Vencido, com declaração de voto

Des. MARQUES CURY – Vencido, com declaração de voto

 

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