Aplicação do CDC às relações entre fornecedores e consumidores

 

Admissível a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações entre fornecedores e consumidores empresários, desde que haja vulnerabilidade fática, econômica, jurídica ou informacional:

  

PROPOSIÇÃO: É possível a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações em que figuram como parte duas pessoas jurídicas. Contudo, por tratar-se de hipótese excepcional, imprescindível a demonstração da vulnerabilidade fática, econômica, jurídica ou informacional daquele que diz se enquadrar na figura do consumidor.

 

JUSTIFICATIVA: Consoante a Teoria Finalista, adotada pelo Superior Tribunal de Justiça e pela doutrina majoritária do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, a definição de consumidor insculpida no art. 2º da Lei 8.078/1990 não se restringe àquele que utiliza determinado produto ou serviço para uso próprio e de sua família. Mais do que isso, a partir da referida teoria, considera-se consumidor aquele que se encontra em patente condição de vulnerabilidade, seja ela fática, econômica, jurídica ou informacional. Tal situação acaba por implicar na possibilidade de aplicação da legislação consumeirista não só às pessoas físicas como também às jurídicas, desde que estas demonstrem o enquadramento em situação de hipossuficiência frente ao fornecedor de bens ou serviços.

Veja-se o entendimento esposado pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça:

ENTENDIMENTO DO TRIBUNAL DE ORIGEM EM HARMONIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULAS 282 E 356/STF. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ.

1. Inviável o recurso especial quando o posicionamento adotado pelo

acórdão recorrido coincide com a jurisprudência do STJ. Súmula 83/STJ.

2. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO.

DECISÃO

Vistos, etc.

Trata-se de agravo de instrumento interposto por BANCO SANTOS S/A – MASSA FALIDA contra decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que inadmitiu recurso especial fundamentado na alínea “c” do art. 105, III, da Constituição Federal.

Na origem, cuida-se de ação monitória ajuizada pelo BANCO SANTOS S.A em desfavor de CARDIESEL LTDA E OUTROS.

Opostos embargos monitórios, o juízo de primeiro grau julgou parcialmente procedente os pedidos.

Irresignados, os embargantes apresentaram recurso de apelação perante o Tribunal de origem, o qual deu parcial provimento ao reclamo, nos seguintes termos (fl. 360):

1) cerceamento de defesa – pretendida realização de prova pericial – desnecessidade – não caracterização – 2) juros – instituições financeiras – não sujeição à (imitação – 3) capitalização – autorização legislativa para os ajustes ‘Ementa’ posteriores a março de 2000, quando se possa inferir autorização – 4) contrato de crédito rotativo acompanhado de extratos – documento hábil à monitoria – 5) multa -fixação em montante superior a 2% – descabimento – 6) compensação – revisão do momento, que deve coincidir com aquele em que se aperfeiçoou a obrigação do credor – 7) honorária advocatícia – adequação – recurso parcialmente provido.

Sobreveio, então, recurso especial alegando violação ao art. 26, da Lei n.º 9.514/97, além de dissídio jurisprudencial.

Asseverou o recorrente que o Código de Defesa do Consumidor não incide na hipótese dos presentes autos, pois a agravada não detêm o status de consumidora, vez que não se trata de destinatária final do serviço, razão pela qual, deve ser reputada válida a cláusula que estipulava a multa contratual em 10% (dez por cento).

Requereu o provimento do reclamo.

Realizado o juízo de admissibilidade pelo Tribunal de origem, foi negado seguimento ao recurso especial.

Diante da inadmissão do especial, o recorrente interpôs o presente agravo de instrumento perante esta Corte.

É o relatório.

Passo a decidir.

O recurso não merece guarida.

Com efeito, importa destacar que o entendimento adotado pelo Tribunal de origem acerca da aplicação do CDC coincide com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Nesse sentido:

 

DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. CONCEITO DE CONSUMIDOR. CRITÉRIO SUBJETIVO OU FINALISTA. MITIGAÇÃO. PESSOA JURÍDICA. EXCEPCIONALIDADE. VULNERABILIDADE. CONSTATAÇÃO NA HIPÓTESE DOS AUTOS. PRÁTICA ABUSIVA. OFERTA INADEQUADA. CARACTERÍSTICA, QUANTIDADE E COMPOSIÇÃO DO PRODUTO. EQUIPARAÇÃO (ART. 29). DECADÊNCIA. INEXISTÊNCIA. RELAÇÃO JURÍDICA SOB A PREMISSA DE TRATOS SUCESSIVOS. RENOVAÇÃO DO COMPROMISSO. VÍCIO OCULTO.

– A relação jurídica qualificada por ser “de consumo” não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus pólos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro.

– Mesmo nas relações entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese concreta decorrer inegável vulnerabilidade entre a pessoa-jurídica consumidora e a fornecedora, deve-se aplicar o CDC na busca do equilíbrio entre as partes. Ao consagrar o critério finalista para interpretação do conceito de consumidor, a jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade de, em situações específicas, abrandar o rigor do critério subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários em que fique evidenciada a relação de consumo.

– São equiparáveis a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais abusivas.

– Não se conhece de matéria levantada em sede de embargos de declaração, fora dos limites da lide (inovação recursal).

Recurso especial não conhecido.

(REsp 476428/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/04/2005, DJ 09/05/2005, p. 390)

 

Ante o exposto, nego provimento ao agravo de instrumento.”

(Ag. 132.312-5/ SP, do STJ, Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, in DJU de 25/11/2011)

 

O mesmo entendimento é adotado em: (TJPR – Ap. Cível nº 730.636-3; Ap. Cível nº 491.849-6; Ag. Instr. nº 782.411-9; Ap. Cível nº 626.228-0; Ap. Cível nº 464.375-4; Ag. Instr. nº 537.553-3; Ag. Instr. nº 781.223-5; Ap. Cível nº 572.165-5; Ap. Cível nº 480.119-6; STJ – RESP nº 476.428-SC; RESP nº 125.841-1; RESP nº 541.847/BA; RESP nº 108.071-9/MG; RESP nº 101.083-4/GO; AG nº 129.991-2/MG)

 

DECISÃO EM DESTAQUE

 

Nesse sentido, confira-se também o brilhante voto proferido pela 9º Câmara Cível do TJPR, na Ap. Cível n° 730.636-3, de relatoria do Des. FRANCISCO LUIZ MACEDO JÚNIOR, publicado no ano de 2011:

 

 

 

Apelação Cível nº 730.636-3, da Comarca de Maringá – 1ª Vara Cível.

Apelante: S. L. A. Ltda.

Apelado: G. & Cia Ltda.

Relator: Desembargador Francisco Luiz Macedo Júnior

 

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – PESSOA JURÍDICA QUE ADQUIRE CAMINHÃO PARA UTILIZAR EM SUA ATIVIDADE COMERCIAL – CASO EXCEPCIONAL EM QUE A VULNERABILIDADE ECONÔMICA RESTOU EVIDENCIADA – RELAÇÃO DE CONSUMO CONFIGURADA – APLICABILIDADE DO CDC – VÍCIO DO PRODUTO – PRAZO DECADENCIAL DE 90 DIAS – ARTIGO 26, II, DO CDC – TERMO A QUO: MOMENTO EM QUE O CONSUMIDOR TOMA CIÊNCIA INEQUÍVOCA DA NEGATIVA DO FORNECEDOR – PERÍCIA INCONCLUSIVA – QUESITOS RESPONDIDOS DE FORMA VAGA, QUE NÃO SE PRESTAM A ELUCIDAR A QUESTÃO – NECESSIDADE DE COMPLEMENTAR O LAUDO PERICIAL – NULIDADE DA SENTENÇA – RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

1. Excepcionalmente, é possível aplicar as medidas protetivas do Código de Defesa do Consumidor em favor de quem adquire um produto ou serviço para utilizá-lo na sua atividade comercial. A configuração da relação de consumo, nestes casos, depende da caracterização da vulnerabilidade por alguma hipossuficiência fática, técnica ou econômica.

2. O termo inicial do prazo decadencial, nos casos de vício do produto aparente, é a data em que o consumidor tomou ciência inequívoca da negativa do fornecedor. 3. Tratando-se de sentença que se embasou em perícia inconclusiva de se anulá-la, determinando nova perícia.

 

Trata-se de ação de indenização ajuizada por G. & Cia Ltda, em face de S. L. A. Ltda, sob o argumento de que adquiriu um caminhão-trator fabricado pela ré e que este teria apresentado defeito, não solucionado pelo fabricante. Requereu a substituição do caminhão por outro novo e com as mesmas especificações técnicas.

A r. sentença de fls. 293/296, julgou procedente a ação, para o fim de condenar a ré “a substituir no prazo de 30 dias, o veículo que está de posse do autor, por outro da mesma espécie, mas do ano em que for efetuada a substituição, e com equipamentos técnicos constantes da nota fiscal 435.728 (fl. 22)“. Condenou o réu ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios, arbitrados em 20% do valor da condenação.

S. L. A. Ltda apela, alegando, preliminarmente, cerceamento de defesa, em virtude do indeferimento do pedido de inspeção do veículo. Justifica a necessidade de tal prova, em virtude de suposta divergência existente no tocante ao verificado durante a perícia e a resposta dada pela perita ao quesito nº 11. Sustenta que o laudo pericial seria “tendencioso e falseou informações contidas em documentos que a própria perita tinha em seu poder“.

Sustenta a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor ao caso, pois como se trata de empresa cujo objeto social é o transporte de cargas, o veículo foi adquirido como insumo. Alega que a pretensão estaria prescrita, isto com base no artigo 178, § 2º, do Código Civil 1916.

Argumenta que caso se entenda pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor, teria ocorrido a decadência, visto que a ação foi ajuizada depois do decurso de 90 dias.

No mérito, alega que não restou comprovada a existência de defeito de fabricação. Diz que o email enviado pela concessionária à fabricante, não teria força probatória, visto que se trata de mero relato dos fatos.

Afirma que a autora promoveu a colocação de terceiro eixo no caminhão, o que acabou por alterar sua estrutura e pode ter sido a causa do defeito apontado. Diz que tal alteração seria apta a gerar a perda da garantia, como constou no termo de garantia.

Diz que a colocação do terceiro eixo abala a estrutura de todo o conjunto do veículo, visto que são cortados os rebites e as extremidades do chassi, para receber o alongamento, que o chassi é submetido a aquecimento para soldagem, que há remoção da suspensão traseira e instalação de molas diferentes das originais, novas rodas e novo conjunto de freios.

Diz que a afirmação da perita, no sentido de que a colocação de terceiro eixo seria benéfica e geraria maior estabilidade para o caminhão, constitui “mera opinião tendenciosa da Senhora Perita“.

Argumenta que antes da colocação do terceiro eixo não houve nenhuma reclamação a respeito do suposto defeito, existente no caminhão, sendo que estas somente ocorreram após as modificações implantadas.

Ressalta que a perícia nada concluiu sobre a existência de defeito de fábrica. Alega que na hipótese de ser mantida a sentença, a obrigação deverá ser convertida em perdas e danos, posto que inexiste, atualmente, caminhão zero quilômetro, do mesmo modelo daquele fabricado no ano de 2000. Além disso, deve ser considerada a depreciação do bem, posto que o caminhão rodou durante todo o tempo de trâmite da ação, perfazendo mais de um milhão de quilômetros, o que demonstra que não era imprestável para o uso.

Alega que os honorários advocatícios teriam sido fixados em valor excessivo.

Préquestiona os artigos 20, § 3º; 267, IV; 330, I, do Código de Processo Civil; 178, § 2º, do Código Civil; 2º e 26, § 2º, I, do Código de Defesa do Consumidor.

Por fim, requereu o provimento do recurso para: a) anular a sentença por cerceamento de defesa; b) reconhecer a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor; c) reconhecer a prescrição da pretensão do autor; d) reconhecer a decadência; e) julgar improcedente a ação; f) converter a obrigação em perdas e danos; g) reduzir os honorários advocatícios.

Contrarrazões às fls. 332/342, defendendo a sentença.

  

É o Relatório.

 

VOTO:

Presentes os requisitos de admissibilidade, intrínsecos e extrínsecos, de se conhecer o presente recurso.

Infere-se dos autos que a empresa G. & Cia Ltda adquiriu da empresa P. B. L. & Cia Ltda, concessionária autorizada S., para Maringá, em data de 15.03.2000, um caminhão marca S., modelo DSC12 (02) 360, placas AJE 9943, ano 2000, modelo 2000, pelo valor de R$ 110.000,00.

Alega a autora que o veículo teria apresentado defeito desde a sua aquisição. Relata que ao trafegar o caminhão se desloca, rapidamente, para a direita. Conta que após várias tentativas de solucionar o problema, a concessionária não obteve êxito. Afirma que enviou três notificações à Scania, mas não obteve resposta. Requer a substituição do caminhão.

A S., por sua vez, alega que a autora efetuou a “truckagem” do caminhão, consistente na colocação de um terceiro eixo, procedimento este que teria dado causa ao defeito apontado. Sustenta que como a autora alterou a estrutura do caminhão, há elisão da garantia e, consequentemente, não há direito a qualquer reparação.

A existência do defeito apontado no caminhão e a colocação do terceiro eixo são matérias incontroversas. A questão debatida nos autos restringe-se à origem do defeito: se vício de fabricação ou causado pela inserção do terceiro eixo.

  

Da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor

 

Defende a S. a inaplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, sob o argumento de que o veículo foi adquirido para ser utilizado na execução da atividade empresarial.

Sem razão, no entanto. Muito embora a empresa apelada tenha por objeto social, dentre outros, o transporte de cargas, entendo que, no caso, restou configurada a relação de consumo entre a fabricante e a adquirente, isto porque restou evidenciada a hipossuficiência entre as partes, o queautoriza a aplicação da legislação consumerista.

Em regra, “a aquisição de bens ou a utilização de serviços para implementar ou incrementar a atividade negocial descaracteriza a relação como de consumo” 1. No entanto, há precedentes do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que, excepcionalmente, é possível aplicar as medidas protetivas do Código de Defesa do Consumidor, em favor de quem adquire um produto ou serviço para utilizá-lo na sua atividade comercial.

O critério para definir esta situação excepcional, em que se permite a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, mesmo quando o produto é adquirido para fins comerciais, é o da vulnerabilidade técnica, econômica ou jurídica de uma das partes, a qual deve ser aferida no caso concreto.

Nesse sentido, oportuno transcrever trecho de voto proferido pelo Ministro Jorge Scartezzini, no julgamento do REsp 575469:

 

“Expostas as duas vertentes conceituais de consumidor, verifica-se inexistir unanimidade, tanto doutrinária, como jurisprudencialmente, contando as duas interpretações com adeptos eminentes. Portanto, e sendo, a  princípio, defensáveis ambos os posicionamentos, faz-se imperioso ao hermeneuta perquirir qual deles mais se coaduna com a finalidade legal (ratio legis).

Como cediço, cuida-se o Código de Defesa do Consumidor de legislação especial, traduzindo-se num microssistema jurídico, com princípios e regras próprios, apartados das normas do direito comum, justamente por visar à tutela específica dos consumidores, classe hipossuficiente e vulnerável numa sociedade globalizada, cuja economia encontra-se regida pelo consumo de massa, dominado, muitas vezes, por grandes e multinacionais corporações. Ora, não haveria sentido em tornar, ao alvedrio do intuito legal, o especial em comum, o excepcional em genérico, ampliando-se sobremaneira a gama de situações a merecer a proteção da legislação consumerista.

De modo que adotamos integralmente o entendimento esposado pelos grandes teóricos do Direito do Consumidor, CLÁUDIA LIMA MARQUES e ANTÔNIO

HERMAN V. BENJAMIN , restringindo a proteção especial aos consumidores não-profissionais, pessoas físicas ou jurídicas, ou àqueles que, embora profissionais, não visem lucro ao adquirir ou utilizar determinado bem ou serviço, ou, ainda, se apresentem como flagrantemente vulneráveis numa determinada relação contratual: “Em face da experiência no direito comparado, a escolha do legislador brasileiro, do critério da destinação final, com o parágrafo único do art. 2º e com uma interpretação teleológica permitindo exceções, parece ser uma escolha sensata. A regra é a exclusão ‘ab initio’ do profissional da proteção do Código, mas as exceções virão através da ação da jurisprudência, que em virtude da vulnerabilidade do profissional, excluirá o contrato da aplicação das regras normais do Direito Comercial e aplicará as regras protetivas do CDC.” (CLÁUDIA LIMA MARQUES , in “Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais”, 4ª ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2002, pp. 278/280) (…)

 

Seguindo essa mesma tendência, verbis:

 

“Não vislumbro a alegada ofensa ao art. 2ª do CDC.

O egrégio Tribunal de origem levou em consideração a vulnerabilidade do recorrido na relação jurídica que manteve com a recorrente, empresa multinacional, e a empresa Catalão Veículos Ltda., concessionária de veículos, para considerá-lo consumidor.

Colhe-se do voto da ilustrada Juíza Maria Elza, relatora do agravo: ‘Desse modo, seja com fundamento na doutrina finalista ou na maximalista, o fato é que o agravante pode e deve ser considerado consumidor, nos termos do art. 2º, da Lei n. 8.078/90.

Afinal, o desequilíbrio de forças entre as partes é tão evidente, que somente com a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao caso em tela, diploma legal que assegura à parte débil da relação jurídica uma tutela especial, poderia se restabelecer um equilíbrio e uma igualdade entre as partes’ (fl. 212).

(…).

O fato de o recorrido adquirir o veículo para transporte de passageiro não afasta a sua condição de hipossuficiente na relação que manteve com as rés.” (REsp nº 502.797/MG, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR , DJU 10.11.2003) – (Superior Tribunal de Justiça, REsp 575469, Rel. Min. Jorge Scartezzini, Julg. 18.11.04, Pub. DJ 06.12.04, p. 325). Grifei

 

A vulnerabilidade econômica está presente quando há visível desproporção entre o porte econômico dos contratantes, como ocorre no caso dos autos, em que de um dos lados do conflito encontra-se a S., uma empresa multinacional, e, de outro, uma empresa nacional de pequeno porte, atuante no interior do Estado do Paraná, que adquiriu um caminhão para facilitar o exercício de seu objeto social (transporte rodoviário de cargas e comércio de produtos alimentícios, hortifrutigranjeiros e armarinhos).

Assim, uma vez configurada a vulnerabilidade da apelada, é necessária a aplicação do Código de Defesa do Consumidor para assegurar à parte hipossuficiente uma tutela especial, capaz de restabelecer o equilíbrio da relação jurídica.

Nesse sentido:

 

Processo civil e Consumidor. Rescisão contratual cumulada com indenização. Fabricante. Adquirente. Freteiro. Hipossuficiência. Relação de consumo. Vulnerabilidade. Inversão do ônus probatório. – Consumidor é a pessoa física ou jurídica que adquire produto como destinatário final econômico, usufruindo do produto ou do serviço em beneficio próprio. – Excepcionalmente, o profissional freteiro, adquirente de caminhão zero quilômetro, que assevera conter defeito, também poderá ser considerado consumidor, quando a vulnerabilidade estiver caracterizada por alguma hipossuficiência quer fática, técnica ou econômica. – Nesta hipótese esta justificada a aplicação das regras de proteção ao consumidor, notadamente a concessão do benefício processual da inversão do ônus da prova. Recurso especial provido. (Superior Tribunal de Justiça, REsp 1.080.719/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Pub. DJe 17/08/2009)

 

E, ainda: Superior Tribunal de Justiça, REsp 1010834/GO, Rel. Nancy Andrighi, Julg. 03/08/2010, Pub. DJe 13/10/2010.

 

Portanto, aplicável, no caso, as normas do Código de Defesa do Consumidor.

 

Da prescrição e da decadência

 

Uma vez caracterizada a relação de consumo, de se afastar a aplicação do prazo prescricional previsto no artigo 178, § 2º, do Código Civil/1916, devendo a questão ser analisada de acordo com as regras do Código de Defesa do Consumidor.

No caso, estando a ação fundada em vício aparente de produto durável (veículo não para na pista, puxa para o lado direito), deve ser aplicado o prazo decadencial de 90 (noventa) dias, previsto no artigo 26, do Código de Defesa do Consumidor. Referido artigo prevê que:

 

Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em:

II – noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis.

§ 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços.

 

Como se vê da leitura do artigo acima citado, o prazo decadencial, nos casos de vícios em produtos duráveis, é de 90 (noventa) dias, começando a fluir da data em que foi efetivada a entrega do produto. No caso, o caminhão foi entregue ao consumidor em data de 16.03.2000, conforme consta na nota fiscal de fls. 22, no campo denominado “data da saída/entrada”. Das ordens de serviço juntadas com a contestação, observa-se que a primeira reclamação a respeito do defeito existente no caminhão foi formalizada, junto à concessionária autorizada S. de Maringá, no dia 04.04.2000 (fl. 88), portanto, dentro do prazo decadencial de 90 dias.

Em que pese a autora ter ajuizado a presente demanda somente no ano de 2002, o fato é que durante o intervalo de tempo compreendido entre a primeira reclamação e o ajuizamento desta ação, a autora tentou solucionar o problema junto à concessionária, bem como perante a própria S., não obtendo resposta (fls. 23/31).

Não se pode dizer que tenha ocorrido a decadência neste intervalo de tempo, uma vez que, no caso, não restou comprovado em que momento a autora soube da negativa de conserto ou da substituição do caminhão.

E a prova sobre isto era ônus da apelante.

Veja-se que há prova nos autos de que a apelante foi comunicada sobre a existência do defeito, por várias vezes, porém não há provas de que a autora tenha sido cientificada sobre a recusa de substituição ou de conserto do produto defeituoso.

Nesse ponto, calha observar disposto no artigo 26, § 2º, I, do Código de Defesa do Consumidor, que assim dispõe: “Obstam a decadência: a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa  correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca“.

Nos autos, não há prova de que a autora tenha sido regularmente notificada sobre a negativa de conserto ou de substituição do veículo, sendo que, na falta de tal prova, não se tem parâmetro para fixação do termo inicial do prazo decadencial, até mesmo porque, nos termos do citado artigo, tal prazo havia sido obstado. Importante salientar, que o e-mail juntado à fl. 84, não comprova a ciência inequívoca da autora, visto que o correio eletrônico foi repassado para endereço pertencente a um funcionário da concessionária autorizada S., em Maringá (Sr. Amberson Luiz Rocha de Oliveira) e não a uma conta pertencente à autora.

Assim, como não houve, sequer, início do prazo decadencial, fica evidente que tal alegação não procede.

  

Do cerceamento de Defesa

 

A questão controvertida nestes autos gira em torno da origem do defeito existente no caminhão: se vício de fabricação ou se causado pela inserção do terceiro eixo. Alega a apelante que a perícia apresenta vários pontos contraditórios e que seria necessária a produção de outras provas para demonstrar que o vício apontado não decorre de defeito de fabricação.

O magistrado singular entendeu que o defeito apontado não decorreu da colocação do terceiro eixo, isto baseado na afirmação da perícia no sentido de que: “a instalação do terceiro eixo aumenta a estabilidade e é benéfico ao conjunto, pois além de suportar uma carga maior, tem uma área de contato maior c/ o solo que beneficia na frenagem e dirigibilidade” (fl. 295).

No entanto, o que se discute nos presentes autos não é se a instalação é benéfica ou maléfica, mas sim se a realização deste procedimento foi a causa efetiva do defeito apontado. O laudo pericial, realizado por engenheira civil, não é conclusivo quanto à causa do defeito apontado.

Consta na perícia, que a instalação do terceiro eixo implica na alteração de alguns itens do veículo, como, por exemplo, o chassi e o conjunto de freios.

Ao ser perguntada se “a implantação do terceiro eixo (truck) é causa de saída do caminhão para a direita?” a perita respondeu que “não se pode afirmar se a causa da saída do caminhão se deve à implantação do 3º eixo” (quesito12 – fl. 244).

No entanto, ao ser perguntada se o defeito era originário da fábrica, a perita respondeu que: “não podemos afirmar com segurança se o defeito é originário de fábrica, pois não foram realizadas medições precisas antes da instalação do 3º eixo” (quesito 15 – fl. 244).

Quando questionada “se a colocação do 3º eixo pode acarretar desequilíbrio na estrutura do veículo modificado“, a reposta foi afirmativa, nos seguintes termos: “se a instalação for realizada sem atender ao projeto e especificação, pode acarretar desequilíbrio na estrutura do veículo modificado” (quesito 14, da ré – fl. 248).

Ao ser indagado se podem ocorrer alterações na dirigibilidade do veículo truckado, a resposta foi idêntica à da pergunta anterior.

Veja-se que a perícia não descarta a possibilidade do defeito ter sido gerado pela colocação do terceiro eixo e nada concluiu, como era mister, quanto à origem do defeito.

Importante salientar que o fato do caminhão deslocar-se para a direita, mesmo com o truck levantado, não comprova a existência de defeito de fábrica, visto que o fato do terceiro eixo não estar em contato com o solo não restitui as condições originais do veículo, ou seja, continua sendo um veículo com estrutura modificada.

Há que se considerar, ainda, que antes da colocação do terceiro eixo não há prova de nenhum registro de reclamação junto à concessionária autorizada S., em Maringá, ou junto à própria S..

Pela documentação acostada aos autos, verifica-se que o caminhão foi entregue à autora em 16.03.2000 (fl. 22). Já o terceiro eixo foi adquirido da empresa R., em data de 29.02.2000 (nota fiscal de fls. 261) e instalado, pela mesma empresa, em 21.03.2000, conforme nota fiscal de mão-de-obra à fl. 263. O primeiro registro de reclamação na concessionária P.B. L. & Cia Ltda data de 04.04.2000 (fl. 88), portanto, é posterior à colocação do terceiro eixo.

Por essas linhas, observa-se que a prova técnica realizada, efetivamente, não se presta a embasar, de forma segura, o decreto judicial de condenação da ré à substituição do caminhão, posto que inconclusiva.

Não se quer aqui dizer que o vício não decorre de defeito de fabricação, porém, pela importância da ação e da prestação jurisdicional, imprescindível que o julgamento esteja amparado em prova robusta, indene de dúvida, o que não é o caso.

Some-se o fato de que a perita que realizou a prova não possui conhecimentos específicos na área de engenharia mecânica, visto que sua formação é de engenheira civil. É de se observar, ainda, que a lei processual civil, reserva em casos tais, a possibilidade do magistrado determinar a realização de nova perícia, se não se sentir seguro com a realizada anteriormente.

Eis o teor do art. 437, do Código de Processo Civil:

 

Art. 437. O juiz poderá determinar, de ofício ou a requerimento da parte, a realização de nova perícia, quando a matéria não lhe parecer suficientemente esclarecida.

 

Sobre o assunto, vale aqui citar as seguintes notas extraídas do Código de Processo Civil e legislação processual civil em vigor, de autoria de Teothonio Negrão e José Roberto F. Gouvêa2:

 

“O juiz pode, a qualquer tempo, sob prudente descrição, de ofício ou a requerimento da parte, determinar a realização de prova pericial, ou reconsiderar anterior decisão que a havia dispensado. (STJ-$a T., REsp 5.268-SP, rel. Min. Athos de Gusmão Carneiro, j. 6.8.91, não conheceram v.u., DJU 11.11.91, p. 16.149)”

 

“É viável determinar de ofício, inclusive em 2º grau, a realização de nova perícia, quando matéria não estiver suficientemente esclarecida. (RJTJERGS 249/165)”.

 

Assim, a solução que se impõe é o pronunciamento de nulidade da sentença, determinando-se, em razão dos fundamentos apontados, a realização de nova perícia, por outro expert com conhecimentos específicos na área de engenharia mecânica.

O perito deverá responder aos seguintes quesitos, além de outros, que vierem a ser efetuados pelas partes ou pelo magistrado:

1) O primeiro eixo ocasiona o desvio lateral?

2) O Segundo eixo sofreu modificação de lugar, ou alguma outra?

3) É possível apontar qual dos três eixos ocasiona o desvio lateral e por quê?

No mais, o deferimento da produção de outras provas, bem como o aproveitamento dos atos e peças que forem possíveis, deve ficar a cargo do juízo de primeiro grau. Por fim, de se destacar que com a decretação de nulidade da sentença, as demais matérias alegadas no recurso de apelação restaram prejudicadas.

Diante do exposto, VOTO por CONHECER o recurso e DARLHE PARCIAL PROVIMENTO, apenas para anular a sentença de primeiro grau, determinando que os autos retornem à Comarca de origem para nova pericia, por perito especializado em engenharia mecânica, a ser nomeado pelo magistrado a quo, na forma indicada no corpo desta decisão.

  

ACORDAM os Membros Integrantes da Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, por UNANIMIDADE de votos, em CONHECER o recurso e DAR-LHE PARCIAL PROVIMENTO, nos termos do voto do Relator.

 

Participaram do julgamento os excelentíssimos Desembargadores José Augusto Gomes Aniceto (presidente sem voto), Rosana Amara Girardi Fachin e D’Artagnan Serpa Sa.

 

Curitiba, 07 de abril de 2011.

 

Francisco Luiz Macedo Junior

                                                                Relator”

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As Ementas foram selecionadas pela Desembargadora VILMA RÉGIA RAMOS DE REZENDE, componente da 11.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, especializada, dentre outras matérias, em Direito de Família.

Com a colaboração de Fernanda Nickel Ferreira, Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas do Brasil – Unibrasil; Assistente de Desembargador do TJPR.

 

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