Lavagem de dinheiro: necessidade da prova do dolo específico

    São bastante comuns acusações por lavagem de dinheiro que não se preocupam, minimamente sequer, em demonstrar ou mencionar o dolo do acusado. Veja-se o exemplo abaixo:

“PENAL. RECEBIMENTO DE DINHEIRO DECORRENTE DE CRIME DE PECULATO. ‘LAVAGEM’ OU OCULTAÇÃO DEVALORES (LEI 9.613⁄98, ART. 1º, § 1º). ESPECIAL ELEMENTO SUBJETIVO: PROPÓSITO DE OCULTAR OU DISSIMULAR AUTILIZAÇÃO. AUSÊNCIA. CONFIGURAÇÃO DE  RECEPTAÇÃO QUALIFICADA (CP, ART. 180, § 6º). EMENDATIO LIBELLI. VIABILIDADE. DENÚNCIA PROCEDENTE.
1. No crime de ‘lavagem’ ou ocultação de valores de que trata o inciso II do § 1° do art. 1º da Lei 9.613⁄98, as ações de adquirir, receber, guardar ou ter em depósito constituem elementos nucleares do tipo, que, todavia, se compõe, ainda, pelo elemento subjetivo consistente na peculiar finalidade do agente de, praticando tais ações, atingir o propósito de ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de quaisquer dos crimes indicados na norma incriminadora. Embora seja dispensável que o agente venha a atingir tais resultados, relacionados à facilitação do aproveitamento (‘utilização‘) de produtos de crimes, é inerente ao tipo que sua conduta esteja direcionada e apta a alcançá-los. Sem esse especial elemento subjetivo (relacionado à finalidade) descaracteriza-se o crime de ocultação, assumindo a figura típica de receptação, prevista no art. 180 do CP.
2. No caso, não está presente e nem foi indicado na peça acusatória esse especial elemento subjetivo (propósito de ocultar ou dissimular a utilização de valores), razão pela qual não se configura o crime de ocultação indicado na denúncia (inciso II do § 1º do art. 1º da Lei 9.613⁄98). Todavia, foram descritos e devidamente comprovados os elementos configuradores do crime de receptação (art. 180 do CP): (a) a existência do crime anterior, (b) o elemento objetivo (o acusado recebeu dinheiro oriundo de crime), (c) o elemento subjetivo (o acusado agiu com dolo, ou seja, tinha pleno conhecimento da origem criminosa do dinheiro) e (d) o elemento subjetivo do injusto, representado no fim de obter proveito ilícito para outrem. Presente, também, a qualificadora do § 6º do art. 180 do CP, já que o dinheiro recebido pelo acusado é produto do crime de peculato, praticado mediante a apropriação de verba de natureza pública.
3. Impõe-se, assim, mediante emendatio libelli (art. 383 do CPP), a modificação da qualificação jurídica dos fatos objeto da denúncia, para condenar o réu pelo crime do art. 180, § 6º do Código Penal.
4. Nesses termos, é procedente a denúncia.”
 
(STJ – AP 472/ES – CE – Rel. Min. Teori Albino Zavascki – DJe de 8.9.11. Destacamos)

O voto do eminente Min. Relator está assim estruturado, em resumo:

“VOTO
 
O EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI (Relator):
 
1.Com a ressalva enunciada no item 4 do voto condutor, a denúncia foi recebida com a qualificação originária, fundada no art. 1º, § 1º, II, da Lei 9.613⁄98, que assim dispõe:
 ‘Art. 1° Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: (…) V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; Pena: reclusão de três a dez anos e multa. § 1° Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo: (…) II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;’.

 2.É relevante para essa tipificação penal (ocultação de valores), como se percebe, ser a coisa produto de crime anterior, a exemplo do que também ocorre no crime de receptação. Todavia, embora tenha essa natureza parasitária, porque surge em razão de um crime anterior, a ocultação de valores é autônomo, no sentido de que não depende, para sua caracterização, de prévia condenação do autor do crime anterior. É suficiente a demonstração da existência do referido crime. Ora, no caso, visando a demonstrar a origem ilícita dos valores recebidos pelo acusado, a denúncia descreveu a ocorrência de um antecedente crime de peculato. Narrou que, em cumprimento a exigência da legislação estadual sobre ICMS, a empresa Samarco Mineração S⁄A, ao realizar operação de transferência de créditos de ICMS para ESCELSA – Espírito Santo Centrais Elétricas S⁄A, doara para a Fundação Augusto Ruschi um montante de R$ 6.300.000,00 (seis milhões e trezentos mil reais), por meio de nota fiscal, os quais deveriam ser aplicados na implementação de ‘programas de educação ambiental’. Entretanto, tal doação teria sido simulada. Assim, embora dando quitação do total a ela destinado, a Fundação teve creditados em sua conta, na data de 04⁄09⁄2000, apenas o valor de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais), dos quais R$ 4.386.800,00 (quatro milhões, trezentos e oitenta e seis mil e oitocentos reais) vieram a ser desviados para a conta de Raimundo Benedito de Souza Filho, com o propósito de serem distribuídos para financiamento de campanhas eleitorais no ano de 2000, tendo, entre os beneficiários, o acusado. A existência desse crime anterior foi adequadamente demonstrada. No particular, há uma sentença condenatória, proferida pelo Juízo da Sétima Vara Criminal de Vitória, nos autos do processo 024.01.011312-4, evidenciando, dentre outros crimes, a prática do peculato, assim como descrito na presente denúncia.
(…)
3.Quanto ao crime objeto da denúncia, a situação fática trazida na acusação é de que o denunciado, no ‘dia 6.9.2000, (…) recebeu um depósito em sua conta corrente (banco 021, agência nº 220, c⁄c nº 6.631.410), no valor de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) proveniente da conta de Raimundo Benedito de Souza Filho’. Tal valor – cujo repasse ao denunciado teria a finalidade de ‘financiar a campanha de seu irmão Ubaldo à Prefeitura de Bom Jesus do Norte‘ – representaria uma parte do produto do antes referido crime precedente de peculato, perpetrado por outros agentes, e estaria sendo distribuído por Raimundo Benedito de Souza Filho ‘entre autoridades públicas, candidatos, caixas de campanha, como propina e⁄ou contribuição irregular para as campanhas eleitorais de Prefeito no ano de 2000′. Além disso, explicitou a denúncia que Umberto Messias de Souza seria um dos ‘reais destinatários dos valores desviados da Fundação Augusto Ruschi’. Assim, Umberto Messias de Souza, ‘ao receber valores que sabia ser provenientes de crime contra a administração pública (peculato)’, teria ocultado ‘a origem ilícita do dinheiro’.
(…)
A materialidade do crime está demonstrada. A controvérsia reside em aferir o elemento subjetivo da conduta do réu, concernente ao prévio conhecimento ou não da origem ilícita da pecúnia depositada em sua conta corrente. Tal elemento volitivo é essencial para a tipificação penal. Em tais hipóteses, em que o conhecimento da procedência criminosa existe apenas no intelecto do agente, no seu impenetrável foro íntimo, a demonstração de que o acusado tinha ciência ou não da origem ilícita deve ser buscada a partir das circunstâncias exteriores.
No caso, há elementos sérios que levam ao convencimento da ciência, por parte do acusado, da origem contaminada do bem. (…)
Bem se vê, portanto, que a concatenação dos fatos está a demonstrar o prévio ajuste de condutas entre aqueles que perpetraram o crime anterior com aqueles que seriam beneficiados diretos do produto do crime, consistente nos recursos em dinheiro para financiar campanha política. Neste contexto, a tese desenvolvida pela defesa, segundo a qual a pecúnia recebida refere-se ao pagamento de empréstimo que concedera a seu irmão para o custeio da campanha eleitoral, está em descompasso com o contexto probatório produzido durante a instrução criminal, revelando-se isolado o depoimento do seu irmão, ao que tudo indica conivente com o réu.
Os depoimentos das testemunhas aqui transcritos, assim como o material recolhido durante a realização da medida de busca e apreensão, compõem um conjunto probatório harmônico e coerente. (…) São conclusivos, portanto, os elementos probantes a respeito do prévio conhecimento da origem criminosa da pecúnia recebida.
4. Resta saber se os fatos assim comprovados são suficientes para corporificar a conduta tipificada na norma incriminadora indicada na denuncia e acima transcrita. O voto de recebimento da denúncia, conforme referido, fez ressalvas a respeito. É que, no crime de ‘lavagem’ ou ocultação de valores indicadas de que trata o inciso II do § 1º do art. 1º da Lei 9.613⁄98, as ações de adquirir, receber, guardar ou ter em depósito constituem elementos nucleares tipo, que, todavia, se compõe ainda pelo elemento subjetivo, consistente na especial finalidade do agente de, praticando tais ações – adquirir, receber, ter em depósito -, atingir o propósito de ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de crime  (de quaisquer dos crimes elencados nos incisos do caput). Embora seja dispensável que o agente venha a atingir tais resultados, relacionados à facilitação do aproveitamento (‘utilização‘) de produtos de crimes, é inerente ao tipo que sua conduta esteja direcionada e apta a alcançá-los. Portanto, as ações de, simplesmente, receber ou ter em depósito valores que sejam produtos dos crimes antecedentes não são suficientes para a configuração dessa figura típica. É essencial que tais ações constituam, não um fim em si próprias, mas um meio pelo qual possa o agente lograr êxito em ocultar ou dissimular o aproveitamento dos referidos bens. Estabelece-se, assim, uma distinção entre (a) os atos de aquisição, recebimento, depósito ou outros negócios jurídicos que representem o próprio aproveitamento (pelo agente ou terceiros), o desfrute em si, da vantagem patrimonial obtida no delito dito ‘antecedente’, e (b) aquelas ações de receber, adquirir, ter em depósito, as quais se encontrem integradas como etapas de um processo de lavagem ou, ainda, representem um modo autônomo de realizar tal processo, não constituindo, por conseguinte, a mera utilização do produto do crime, mas um subterfúgio para distanciar tal produto de sua origem ilícita.  Trata-se, em suma, como atesta a doutrina especializada, de uma espécie de ‘receptação específica’, com duas especiais características: (a) a de estar relacionada ao produto de apenas alguns crimes (os indicados pela norma incriminadora) e  (b) de ser perpetrada com a especial ‘finalidade de encobrir ou dissimular a utilização do patrimônio ilícito resultante de um dos crimes anteriores’ (CALLEGARI, André Luis. Lavagem de dinheiro: aspectos penais da Lei nº 9.613⁄98, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, p. 111), finalidade essa que, portanto, ‘deverá obrigatoriamente integrar o dolo ao nível do tipo subjetivo’ (MAIA; Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro (lavagem de ativos provenientes de crime), SP: Malheiros, 1999, pgs. 95. Em outras palavras: ‘Nem todas as condutas de ‘ocultar’ e⁄ou ‘dissimular’ configuram a lavagem de dinheiro. É preciso constatar o elemento subjetivo. Estas ações devem necessariamente demonstrar a intenção de o agente esconder a origem ilícita do dinheiro, bens, etc. A simples movimentação de valores ou bens, com o intuito de utilizá-los, desfrutar-lhes ou mesmo acomodá-los, mas sem  intenção de escondê-los, não configura o delito’ (MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de lavagem de dinheiro, São Paulo: Atlas, 2006, p. 107). No mesmo sentido: CERVINI, Raúl; OLIVEIRA, Wiliam Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Comentários à Lei 9.613⁄98, SP:RT, 1998, p.335⁄336; SOUZA NETO, José Laurindo de. Lavagem de dinheiro, Curitiba: Juruá Editora, 2000, p.100; BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de dinheiro e obrigações civil correlatas, 2 ed., SP:RT, 2007, p.183.
5. Ora, no caso concreto, os fatos narrados na denúncia – recebimento pelo denunciado de depósito em cheque, diretamente na sua conta corrente, de valores resultantes de crime de peculato, para o financiamento de campanha eleitoral de seu irmão – não se adequam, por si sós, à descrição da figura típica. Conforme acentuado, são insuficientes para a configuração do referido tipo penal as ações objetivas de “receber, ter em depósito”, uma vez que sua tipicidade reclama também a existência de um contexto capaz de evidenciar que o agente realizou tais ações com a finalidade específica de ocultar ou dissimular a utilização desses bens, direitos ou valores. E o contexto trazido na denúncia é inteiramente diferente: o da divisão do produto de crime ‘entre’ seus ‘reais destinatários’, o da distribuição de quantias desviadas ‘entre autoridades públicas, candidatos, caixas de campanha, como propina e⁄ou contribuição irregular para as campanhas eleitorais de Prefeito no ano de 2000‘, o do recebimento do ‘dinheiro para financiar a campanha de seu irmão‘ à ‘Prefeitura de Bom Jesus do Norte’, o da transação bancária feita diretamente pelo depósito de cheque da conta do distribuidor dos recursos desviados (Raimundo Benedito) para a conta do denunciado.
Portanto, embora conste da denúncia a descrição da ocorrência de um crime antecedente, incluído entre os crimes contra a administração pública (o peculato), bem como a afirmação de que o denunciado ‘ao receber valores que sabia ser provenientes’ desse crime ‘ocultou a origem ilícita do dinheiro‘, a peça acusatória sequer descreve qualquer ação do denunciado tendente à ocultação (ou mesmo dissimulação) dos valores recebidos. De outro lado, não foi afirmado que a finalidade da conduta residia na ocultação ou dissimulação da origem dos valores, ou na conversão de ativos ilícitos em lícitos – elementos que sustentam o tipo de injusto de lavagem de dinheiro. Pelo contrário, o que a denúncia explicitou é que ‘em tese, teria recebido o dinheiro para financiar a campanha de seu irmão Ubaldo à Prefeitura de Bom Jesus do Norte (…) e não em razão de seu cargo de Conselheiro do Tribunal de Contas Estadual (…)’.
(…)
No caso, impõe-se essa emendatio libelli, já que dos fatos narrados resulta indubitavelmente a conduta típica do delito de receptação qualificada, prevista no art. 180, § 6º, do CP. O art. 180, caput, do Código Penal, a saber: “Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte”. Para configuração desse crime de receptação, além do pressuposto de que a coisa seja produto do crime, é necessária a vontade livre e consciente de adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar a coisa com pleno conhecimento da sua origem criminosa. (…)
Ora, no caso, restaram devidamente comprovados (a) a existência do crime anterior, (b) o elemento objetivo (o acusado recebeu dinheiro oriundo do crime), (c) o elemento subjetivo (o acusado agiu com dolo, ou seja, tinha pleno conhecimento da origem criminosa do dinheiro) e (d) o elemento subjetivo do injusto, representado no fim de obter proveito ilícito para outrem (no caso, seu irmão Ubaldo Martins de Souza). Portanto, o acusado Umberto Messias de Souza realizou objetiva e subjetivamente as elementares do crime de receptação, incorrendo em conduta típica, antijurídica (ante a ausência de qualquer excludente de ilicitude) e culpável (imputável, tinha potencial conhecimento da ilicitude, assim como era exigível, nas circunstâncias, conduta diversa).  Incide, ainda, a qualificadora prevista no § 6º do art. 180 do CP, já que, como evidenciado, o dinheiro recebido pelo acusado é produto do crime de peculato, praticado mediante a apropriação de verba de natureza pública pertencente ao Estado do Espírito Santo.
(…)
É o voto.” (destacamos)

N o t a s

    A possibilidade de imputar mais crimes e de pleitear condenações mais altas tem sido muito favorecida pela redação legal aberta do tipo de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/98, art. 1º): “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime”. Por isso, o Ministério Público, não raro, vislumbra a prática desse crime em situações que, a rigor, são manifestamente atípicas ou, no máximo, configuram delito menos grave. É disso que trata a decisão ora comentada.
Segundo o GAFI (Grupo de Ação Financeira Internacional), são três as fases do crime de lavagem de capitais: a colocação (placement), a dissimulação ou ocultação (layering) e a integração (integration). A colocação, também chamada de conversão ou ocultação, consiste na aplicação dos ativos adquiridos ilicitamente no sistema financeiro, através de artifícios tais como a compra de imóveis, a aquisição de obras de arte, joias, e de transações na bolsa de valores. Tal etapa busca esconder as somas arrecadadas de maneira ilícita, de forma fracionada ou integral, com ou sem a ocultação da identidade dos titulares.
A dissimulação (ocultação ou circulação) visa o distanciamento do capital ilícito de sua origem, por meio de inúmeras transações subsequentes, de forma que se não possa mais precisar a origem do capital. Nessa fase, são utilizadas, como formas de dissimulação, complexas transações financeiras, que geralmente envolvem paraísos fiscais (SOUZA NETTO, José Laurindo de. Lavagem de Dinheiro. Curitiba: Juruá, 1999, p. 43). A literatura, de modo geral, marca o aspecto complexo e sofisticado dessa fase. A quadrilha, empenhada em viabilizar o disfarce da real origem do dinheiro, frequentemente envolve várias pessoas jurídicas como titulares de contas bancárias em operações de remessa e de transferência recíprocas, com o intento de distanciá-las o mais possível da fonte. É, talvez, a etapa mais importante do procedimento. Como lembra Renato Brasileiro, “nessa fase é realizada uma série de negócios ou movimentações financeiras, a fim de impedir o rastreamento e encobrir a origem ilícita dos valores” (BRASILEIRO, Renato. Lavagem ou ocultação de bens – Lei 9.613, 03.03.1998. In GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches (Coord.). Legislação Criminal Especial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 520).
Já a integração é a reintrodução do capital no mercado através de negócios aparentemente lícitos. Nessa fase, portanto, não há dissimulação das origens do dinheiro, mas o reaparecimento de uma soma no mercado sob o manto da legalidade. Isso pode se dar por meio de investimentos no mercado mobiliário, imobiliário, negocial, financeiro e comercial em geral.
Além disso, a doutrina tem classificado o crime de lavagem como uma série de atos, uma operação – e nunca a ação única de receber e/ou utilizar valor cuja origem possa ser ilícita. Em estudo específico sobre o assunto, Antônio S. A. de Moraes Pitombo explica: “partindo-se de uma perspectiva do tipo, fundada na noção nullum crimen sine actione, deve-se ter em mente que a lavagem do dinheiro apresenta-se como atividade, quer dizer, realização de uma série de atos concatenados no tempo e espaço, objetivando seja atingida determinada finalidade” (MORAES PITOMBO, Antônio Sergio A. de. Lavagem de dinheiro – a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 36-37, 2003. Destacamos). Sobre ação de ocultação, o jurista exemplifica: “é feito o fracionamento do capital, obtido com a infração penal, e, depois, pequenos depósitos bancários que não chamam a atenção pela insignificância dos valores e escapam às normas administrativas de controle, impostas às instituições financeiras (art. 10, II, combinado com o art. 11, II, a, da Lei 9.613/1998)” (idem).
Não é possível, portanto, a interpretação de que o verbo “ocultar” permite a condenação por um ato isolado: trata-se de esconder uma qualidade, que é a situação de ilicitude do valor e não de camuflar o valor em si. O simples depósito bancário de dinheiro obtido por via ilícita ou a ocultação física de dinheiro em espécie são exemplos de atos que não se subsumem ao tipo da lavagem de dinheiro. Contudo, tais exemplos são frequentes em denúncias por esse crime (as quais geralmente redundam em absolvições ou desclassificação para outro delito).

É elementar que a introdução do delito de lavagem, de ocultação de bens, direitos e valores, no ordenamento jurídico brasileiro do final dos anos 90 decorreu do extraordinário impacto mundial causado pelo terrorismo, que se utilizava de recursos financeiros obtidos criminosamente, notadamente pelo tráfico de entorpecentes. Os controles nacionais e internacionais das operações financeiras assumiram renovado rigor como verdadeiro assunto de Estado no campo da segurança militar e civil.  O item 21 da exposição de motivos da Lei nº 9.613/98 é elucidativo nesse sentido: “embora o narcotráfico seja a fonte principal das operações de lavagem de dinheiro, não é a sua única vertente. Existem outros ilícitos, também de especial gravidade, que funcionam como círculos viciosos relativamente à lavagem de dinheiro e à ocultação de bens, direitos e valores. São eles o terrorismo, o contrabando e o tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção, a extorsão mediante seqüestro, os crimes praticados por organização criminosa, contra a administração pública e contra o sistema financeiro nacional. Algumas dessas categorias típicas, pela sua própria natureza, pelas circunstâncias de sua execução e por caracterizarem formas evoluídas de uma delinqüência internacional ou por manifestarem-se no panorama das graves ofensas ao direito penal doméstico, compõem a vasta gama da criminalidade dos respeitáveis.”

    Fica clara, assim, seja por óbices do tipo legal do art. 1º da Lei nº 9.613/98, seja pela essência da criminalização da lavagem de dinheiro, que as possibilidades legais para a condenação por esse ilícito são muito mais limitadas do que pode fazer supor a grande quantidade de acusações em trâmite no Judiciário sobre essa matéria. E, mesmo que se trate de outro crime, como, p.ex., a receptação, caberá ao Ministério Público provar que o imputado tinha indubitável ciência da proveniência ilícita do valor. Bastante expressivo, nessa seara, o seguinte aresto do Tribunal de Justiça do Paraná: “Não restando caracterizado o requisito essencial do delito do artigo 180, ‘caput’ do Código Penal, qual seja a ciência da origem ilícita dos bens a serem revendidos, há que se considerar pela absolvição do réu, cuja confiança na origem lícita dos bens por ele recebidos mostrou-se cristalina. (…) Apesar de comprovada a autoria, para que se configure o crime de receptação é necessário que o agente tenha conhecimento, no momento do cometimento do crime, que o produto tem origem ilícita” (Ap. Crim. 0312702-6 – Rel. Des. Miguel Pessoa – 4ª C. Crim. – J: 25.5.06. Destacamos).

 

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