Juiz que sentencia de férias: incompetência e parcialidade

            O princípio da identidade física do Juiz é muito mais antigo na literatura do que na lei. Por isso, sempre houve dificuldade prática na sua aplicação. Veja-se mais um exemplo:

 

HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO (ARTIGOS 33 E 35, COMBINADOS COM O ARTIGO 40, INCISOS III E V, TODOS DA LEI 11.343⁄2006). SENTENÇA PROFERIDA POR JUIZ QUE SE ENCONTRAVA EM GOZO DE FÉRIAS E QUE JÁ HAVIA SIDO REMOVIDO PARA OUTRA VARA DA MESMA COMARCA. INCOMPETÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. CONCESSÃO DA ORDEM.

1. De acordo com o princípio da identidade física do juiz, que passou a ser aplicado também no âmbito do processo penal após o advento da Lei 11.719, de 20 de junho de 2008, o magistrado que presidir a instrução criminal deverá proferir a sentença no feito, nos termos do § 2º do artigo 399 do Código de Processo Penal.

2. Em razão da ausência de outras normas específicas regulamentando o referido princípio, nos casos de convocação, licença, promoção ou de outro motivo que impeça o juiz que tiver presidido a instrução de sentenciar o feito, por analogia – permitida pelo artigo 3º da Lei Adjetiva Penal -, deverá ser aplicado subsidiariamente o contido no artigo 132 do Código de Processo Civil, que dispõe que os autos passarão ao sucessor do magistrado. Doutrina. Precedente.

3. No caso em apreço, não obstante já estivesse em vigor o § 2º do artigo 399 do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei 11.719⁄2008, quando proferida a sentença, o Juiz de Direito encontrava-se em gozo de férias regulamentares, e já havia sido removido da 3ª Vara de Tóxicos de Belo Horizonte⁄MG, para a 2ª Vara de Família da mesma comarca.

4. Assim, na hipótese vertente, conquanto tenha sido o responsável pela instrução do feito, o Juízo que proferiu a decisão condenatória, tanto em razão das férias, como também em virtude da remoção, não era mais o competente para se manifestar sobre o mérito da ação penal, já que, nos termos do artigo 132 do Código de Processo Civil, o juiz que presidiu a instrução, mas que por qualquer motivo esteja afastado, não proferirá sentença, devendo encaminhar os autos ao seu sucessor.

5. Constatada a incompetência do Juízo prolator do édito repressivo, cumpre reconhecer a nulidade da sentença prolatada nos autos, devendo outra ser proferida pela autoridade judicial competente.

6. Anulada a condenação, restam prejudicados os demais pedidos formulados no mandamus.

7. Ordem concedida para anular a sentença condenatória proferida contra o paciente, devendo outra ser prolatada pelo Juízo competente.”

(STJ – HC 184838/MG – 5ª T. – Rel. Min. Jorge Mussi – DJe de 25.8.11)

 

            O acórdão conta com as seguintes passagens:

 

O EXMO. SR. MINISTRO JORGE MUSSI (Relator): Conforme relatado, com este habeas corpus pretende-se, em síntese, a anulação da sentença condenatória em face da incompetência do magistrado prolator ou, alternativamente, a exclusão do delito de associação para o tráfico do édito repressivo, o afastamento das causas de aumento previstas nos incisos III e V da Lei 11.343⁄2006, e a aplicação da minorante estabelecida no § 4º do artigo 33 de Drogas, substituindo-se a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Segundo consta dos autos, o paciente foi denunciado, juntamente com outros corréus, pela suposta prática dos delitos de tráfico de drogas e de associação para a narcotraficância (artigos 33 e 35, combinados com o artigo 40, incisos III e V, todos da Lei 11.343⁄2006) (…).

Sobreveio sentença, na qual o paciente restou condenado à pena de 10 (dez) anos, 10 (dez) meses e 18 (dezoito) dias de reclusão, em regime inicial fechado, além do pagamento de 1.632 (mil seiscentos e trinta e dois) dias-multa, pela prática dos delitos previstos nos artigos 33 e 35, combinados com o artigo 40, incisos III e V, todos da Lei 11.343⁄2006. (…)

Pois bem. Compulsando os autos, no que tange à suposta eiva do édito repressivo, sob o argumento de que estaria em contrariedade com o princípio da identidade física do juiz, razão assiste aos impetrantes.

Com efeito, de acordo com o referido princípio, que passou a ser aplicado também no âmbito do processo penal após o advento da Lei 11.719, de 20 de junho de 2008, o magistrado que presidir a instrução criminal deverá proferir a sentença no feito, nos termos do § 2º do artigo 399 do Código de Processo Penal, isto é, vinculou-se o julgador da causa à prova produzida nos autos, como se observa da redação da mencionado dispositivo, in verbis:

 ‘Art. 399. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008). § 1º O acusado preso será requisitado para comparecer ao interrogatório, devendo o poder público providenciar sua apresentação. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008). § 2º O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

Entretanto, é certo que o aludido princípio não tem aplicabilidade absoluta, já que a prestação jurisdicional dos magistrados investidos na competência para a apreciação e julgamento das causas criminais passaria a ser, necessariamente, ininterrupta, impedindo-os de afastar-se temporariamente de suas funções, seja por motivo de férias, licença médica e até mesmo a progressão funcional, que é inerente à carreira.

Para contornar tal situação, em razão da ausência de outras normas regulamentando o primado em apreço, esta Corte Superior de Justiça vem admitindo a mitigação do aludido princípio nos casos de convocação, licença, promoção ou de outro motivo que impeça o juiz que tiver presidido a instrução de sentenciar o feito, mediante aplicação por analogia – permitida pelo artigo 3º da Lei Adjetiva Penal -, da regra contida no artigo 132 do Código de Processo Civil,  que assim preconiza:

 ‘Art. 132. O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor. (Redação dada pela Lei nº 8.637, de 31.3.1993). Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas.

Dessa forma, observa-se que em respeito ao princípio da identidade física do juiz consagrado no sistema processual penal pátrio, a sentença deverá, de regra, ser proferida pelo magistrado que participou da produção das provas durante o processo criminal, admitindo-se, excepcionalmente, que juiz diverso o faça, quando aquele estiver impossibilitado de realizar o ato em razão das hipóteses de afastamento legal narradas.

(…)

No caso em apreço, não obstante já estivesse em vigor o § 2º do artigo 399 do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei 11.719⁄2008, quando preferida a sentença, em 30.06.2009 (e-STJ, fl. 55), o Juiz de Direito sentenciante, conforme afirmado de próprio punho no referido título judicial, encontrava-se em gozo de férias regulamentares, bem como já havia sido removido da 3ª Vara de Tóxicos de Belo Horizonte⁄MG para a 2ª Vara de Família da mesma comarca, por decisão da Corte Superior do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em Sessão Ordinária ocorrida aos 24.6.2009, cuja ata foi considerada publicada no dia 29.6.2009 (fl. 67).

(…)

Na hipótese vertente, conquanto tenha sido o responsável pela instrução do feito, o Juízo que proferiu o édito repressivo, tanto em razão das férias, como também em virtude da remoção, não era mais o competente para se manifestar sobre o mérito da ação penal.

Isso porque, nos termos do artigo 132 do Código de Processo Civil, o juiz que presidiu a instrução, mas que por qualquer motivo esteja afastado, não proferirá sentença, devendo encaminhar os autos ao seu sucessor. Assim, durante as férias do Juiz José Eustáquio Lucas Pereira, competiria ao magistrado substituto da 3ª Vara de Tóxicos apreciar o mérito do processo penal em comento, inexistindo motivos que justifiquem a prolação de sentença durante o período de seu descanso regulamentar.

Quanto ao ponto, é imperioso assinalar que ainda que se possa admitir a presunção, feita pela Corte de origem, de que o Juízo sentenciante se manifestou nos autos antes de assumir a Vara de Família para a qual foi removido, é certo que o mencionado magistrado encontrava-se em gozo de férias, conforme ele próprio confirmou ao decidir a causa.

Desse modo, inexistem motivos plausíveis ou razoáveis a justificar a conduta do Juiz de Direito prolator do édito repressivo, que se manifestou sobre o mérito da presente ação penal durante período no qual se encontrava temporariamente afastado de suas atividades em razão de férias regulamentares, oportunidade em que competiria ao seu substituto atuar no feito.

Ademais, e ao contrário do que assestado pelo Tribunal de Justiça Estadual, não é possível presumir que a prolação da sentença objurgada tenha se dado antes de produzirem os efeitos da remoção deliberada pelo Órgão Especial do aludido Sodalício.

É que, além de tal presunção contrariar o que consignado pelo próprio magistrado sentenciante, que afirmou que, ao tempo da decisão, ‘encontrava-se em gozo de férias regulamentares‘ e ‘removido para a 2ª Vara de Família desta Comarca‘ (e-STJ, fl. 38), é certo que a deliberação sobre a sua remoção ocorreu aos 24.6.2009, em Sessão Ordinária da Corte Superior do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, cuja ata foi disponibilizada aos 26.6.2009 (uma sexta-feira), e considerada publicada aos 29.6.2009 (segunda-feira subsequente).

Conclui-se, portanto, que no dia 30.6.2009, data na qual o magistrado singular sentenciou o feito, a sua remoção para a 2ª Vara de Família da comarca de Belo Horizonte⁄MG já era dotada de todos os requisitos de validade e eficácia, anunciando o esvaziamento da sua competência funcional para julgar os feitos distribuídos à 3ª Vara de Tóxicos daquela comarca.

Aliás, conveniente registrar que o julgamento da causa pelo Juiz durante as suas férias, e mesmo após ter sido removido para outra Vara, poderia caracterizar até mesmo a sua suspeição, na medida em que, ao revelar a intenção de se manifestar sobre o feito quando não era obrigado a prestar a jurisdição, por estar temporariamente afastado de suas funções, poderia demonstrar possível atuação parcial em relação a determinado processo criminal.

Isto porque, embora não se possa negar que o aludido magistrado estivesse investido de jurisdição, a qual, como é cediço, é una, a sua atuação se deu em desconformidade com as normas de divisão e organização judiciária, implementadas para dar efetividade à distribuição de competência regulada na Constituição Federal, exsurgindo daí a ofensa ao princípio do juiz natural, já que, se não é dado ao jurisdicionado escolher previamente o Juízo ao qual a causa será levada à apreciação e julgamento, veda-se igualmente que este vá ao encontro dos feitos que pretende sentenciar.

(…)

Assim, constatada a incompetência do Juízo prolator do édito repressivo, cumpre reconhecer a nulidade da sentença prolatada nos autos, devendo outra ser proferida pela autoridade judicial competente. Anulada a condenação, restam prejudicados os demais pedidos formulados no mandamus, quais sejam, o de exclusão do delito de associação para o tráfico do édito repressivo, o de afastamento das causas de aumento previstas nos incisos III e V da Lei 11.343⁄2006, e o de aplicação da minorante estabelecida no § 4º do artigo 33 de Drogas, substituindo-se a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, uma vez que relacionados ao mérito da causa, que será objeto de nova apreciação, agora por magistrado competente.

Ante o exposto, concede-se a ordem para anular a sentença condenatória proferida contra o paciente, devendo outra ser prolatada pelo Juízo competente.

É o voto.” (destacamos)

 

N o t a s

 

            Normalmente, a parte pleiteia a aplicação do princípio da identidade física do Juiz – quando o magistrado que presidiu a instrução probatória não foi o mesmo que prolatou a sentença. Aqui, a hipótese é diferente: o magistrado que participou de todo o processo foi o mesmo que sentenciou. Ocorre que, ao tempo da sentença, ele já não era mais competente para julgar o caso. Assim, o impetrante pede o afastamento do citado princípio.

        A sessão finalizou com um voto vencido, pela denegação da ordem, alinhavando que a sentença teria sido publicada no mesmo dia em que o foi a portaria de remoção do magistrado para a outra vara e que, por isso, o Juiz ainda detinha jurisdição legítima sobre o caso. Contudo, a maioria entendeu que a portaria estava publicada um dia antes da prolação da sentença – a qual, logicamente, foi publicada somente após a entrada em vigor da portaria.

            A cláusula-garantia de que “ninguém será processado nem sentenciado senão por autoridade competente” (CF, art. 5º, LIII) foi traduzida em norma processual penal há poucos anos (Lei nº 11.719/08), nesta fórmula: “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença” (CPP, art. 399, §2º). A preocupação do legislador é louvável, pois, ao reforçar o contato exclusivo de um mesmo juiz com cada causa, cuida de otimizar a qualidade da prestação jurisdicional. É fato que a sentença será, provavelmente, mais abrangente e democrática se for redigida pela autoridade que participou da produção da prova. O juiz que assume a causa especificamente para sentenciar corre o risco de desconsiderar algum detalhe ou aspecto que não estão bem retratados nos autos, mas que não escaparam ao seu antecessor.

            Como se frisou no julgamento, a exigência da identidade física do juiz não é absoluta. Há hipóteses previstas em lei (CPC, art. 132) nas quais ele, mesmo tendo presidido a instrução, estará desobrigado de analisar o mérito da demanda. Aqui, tais hipóteses estão representadas pelas férias e pela remoção do magistrado a outro Juízo.

            Efetivamente, o processo era complexo, envolvendo graves acusações e vários réus. O juiz participou da instrução e certamente conhecia bem a prova. No entanto, ao tempo em que os autos foram à conclusão, a autoridade gozava de férias regulamentares e nada o obrigava a exercer a jurisdição naquele caso. Além disso, o magistrado sabia que já estava removido para outro órgão judicante. Mesmo assim, por iniciativa própria, resolveu sentenciar.

            É claro que não se pode repreender o servidor público que, por empenho pessoal, por dedicação ímpar e por raro senso de responsabilidade, opta por trabalhar mesmo durante as suas férias. O serviço público brasileiro seria mais eficiente, de modo geral, se todos os seus funcionários pensassem assim. Aqui, porém, trata-se de um Juiz, cujo dever não é apenas julgar, mas julgar com imparcialidade.

            Não se afirma que referido magistrado tenha sido parcial, mas somente que a cautela de não parecê-lo é sempre recomendável. As duas causas do impedimento judicante (férias e remoção) somam-se para acusar a sua incompetência. O esforço (quiçá desmedido) para conferir celeridade ao caso, afinal, acabou por determinar a nulidade da sentença e necessidade de se repetir o trabalho outrora realizado, o qual, talvez, pudesse ter sido feito com a mesma diligência e qualidade pelo magistrado substituto – este sim, o competente, à época, para exercer a jurisdição.

 

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