Dever de preservação do meio ambiente versus direito à moradia

              A criminalização de danos a bens jurídicos abstratos pode dar ensejo a condenações absolutamente desnecessárias e sem finalidade social alguma. É o caso do cidadão cujo julgamento segue abaixo ementado:

  

“PENAL. DANO AO MEIO AMBIENTE (ART. 40 DA LEI N. 9.605⁄98). CONSTRUÇÃO DE CASA DE ADOBE. DELITO INSTANTÂNEO DE EFEITOS PERMANENTES. CONDUTA ANTERIOR À LEI INCRIMINADORA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. CRIME. INEXISTÊNCIA. DOLO DE DANO. AUSÊNCIA. MORADIA. DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL. ÁREA CONSTRUÍDA. 22 (VINTE E DOIS) METROS QUADRADOS. INSIGNIFICÂNCIA. PROCESSO PENAL. JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA.

1. A construção de casa de adobe em área de preservação ambiental constitui dano direto instantâneo de efeitos permanentes. Precedentes.

2. Não há crime sem lei anterior que o defina (art. 1º do Código Penal).

3. Conduta anterior à vigência da Lei n. 9.605⁄1998.

4. A construção de casa para servir de moradia ao acusado e sua família não configura dolo de dano ao meio ambiente, pois traduz necessidade e direito fundamental ao chão e ao teto (art. 6º da Constituição Federal).

5. O direito penal não é a prima ratio; o dano causado ao meio ambiente decorrente da edificação de casa com 22 (vinte e dois) metros quadrados não ultrapassa os limites do crime de bagatela e pode ser resolvido por meio de instrumentos previstos em outros ramos do Direito Civil.

6. Ordem concedida para cassar o acórdão e restaurar a sentença absolutória.”

(STJ – HC 124820/DF – 6ª T. – Rel. Des. Conv. Do TJSP Celso Limongi – DJe de 22.8.11. Destacamos)

 

            Vejam-se as razões de fato e de Direito que fundamentam a solução absolutória:

  

RELATÓRIO

(…)

Efetivamente, foi o paciente, antes absolvido, condenado por construir uma casa de adobe para sua moradia, ainda que os danos ambientais que foram objeto da denúncia tivessem ocorrido em 1996 (fl. 36). Por isto, alega o Defensor Público da União o seguinte:

I – há ofensa ao princípio da legalidade (art. 1º do Cód. Penal), pois a conduta é anterior à vigência da Lei n. 9.605⁄98;

II – a conduta é insignificante, pois a lesão ambiental não tem relevo bastante para acionar os mecanismos de repressão penal;

III – agiu o réu, aqui paciente, com erro de proibição, pois “o acusado não tinha conhecimento do caráter ilícito do fato e em momento algum declarou saber que a área invadida era pública ou privada…” (fl. 15);

IV – a ausência de completa reparação do dano impende seja o feito suspenso até que seja esta obrigação adimplida, nos termos do art. 28, II e IV, da Lei n. 9.605⁄98.

Pede seja a ordem concedida para declarar a atipicidade da conduta, a teor do art. 1º do Cód. Penal, bem como à luz do princípio da insignificância e ante a existência de erro de proibição, além de requerer a suspensão do feito conforme dispõe o art. 28 da Lei n. 9.605⁄98.

Indeferido o pedido liminar, vieram as informações da autoridade impetrada; o Ministério Público Federal opinou pela denegação da ordem, sob o argumento de que o crime é permanente.

Os registros processuais do Tribunal Regional Federal da 1ª Região informam que está em curso a execução das penas restritivas de direito que lhe foram impostas em substituição à pena reclusiva de 1 (um) ano e 6 (seis) meses.

É o relatório.

 

VOTO

  

(…)

Este é o tipo penal pelo qual foi o paciente condenado: Art. 40. Causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação e às áreas de que trata o art. 27 do Decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990, independentemente de sua localização: Pena – reclusão, de um a cinco anos.

O dano, conforme percebido pelo acórdão, é este (fl. 40):

‘… inobstante ter o Apelado declarado em seu depoimento de fls. 68⁄69, em 03.03.2004, que ‘mora na área desde 1997′, afirmou, contudo, que ‘fez essa mudança há cerca de um ano’, corroborando, desta forma, com a afirmação do Ministério Público Federal no sentido de que: ‘o denunciado causou dano ao meio ambiente não só com o desmatamento do local, ocorrido no ano da invasão, mas também com a reforma da casa, quando transformou-a de madeirite para barro e, ao retirar o material (barro) para a reforma do imóvel, causou novo dano ao meio ambiente’, isto em 2002, época em que ‘sua conduta já era descrita como crime’, porquanto a lei que disciplina a matéria entrou em vigor em 1998, não havendo que se falar em atipicidade da conduta’.

O voto do relator transcreve, ainda, trecho das alegações do Acusador (fl. 41):

‘Conforme expõe a denúncia, a ocupação da área preservada gerou inúmeros danos ambientais, até maiores que a edificação: ‘Os danos ambientais observados, todos decorrentes da retirada da vegetação, são: i) compactação do solo, com aumento do escoamento superficial e diminuição da infiltração das águas pluviais; ii) redução da capacidade degeneração do cerrado, pela redução dos propágulos vegetais e degradação de habitats. A casa contribui com os danos à unidade de conservação, ocupando terreno que idealmente deveria se prestar à revegetação nativa (…)’

Assim, o que se tem é a condenação de alguém porque construiu, em área de preservação ambiental, uma moradia de madeirite, depois convertida em casa de barro, com 22 m2 (fl. 33). A ocupação é de 1996. O dano não deriva da construção da casa, mas da retirada da vegetação que ali existia para viabilizar a construção. Isto é: quando construída a casa, já estava consumado o dano. No entanto, àquele tempo, inexistia norma incriminadora. A reforma da casa, a saber, a substituição do madeirite por barro, nada acrescenta ao dano ambiental porque, àquela altura, a área já estava degradada, e não se pode dizer que o barro utilizado na construção da casa tenha consubstanciado nova infração, porque isto não está na denúncia.

(…)

Faço outro reparo ao acórdão: a afirmativa do dolo de produzir dano não condiz com as declarações do acusado, como transcritas no voto-condutor (fl. 40):

‘… cabe esclarecer que o Apelado em seu depoimento, este tinha plena consciência de que estava invadindo terra pública, senão vejamos:

‘(…) que morava anteriormente em Samambaia em uma área invadida que no local antes era ocupado pela empresa ‘só frango’ e quando a mesma desocupou o local as famílias invadiram; que desmatou o local e não abriu nenhuma fossa; que quando mudou para o local sabia que estava invadindo uma área, (…); que morava em uma área invadida e como foi retirado ficou sem moradia; (…)’ (fls. 68⁄69).

 Ora, o depoimento mostra que o dolo era de construir moradia para si e sua família, mesmo ciente de que a área não lhe pertencia, mas isso não corresponde ao dolo necessário à subsunção da conduta ao tipo do art. 40 da Lei n. 9.605⁄98, pois uma coisa é invadir terra pública, e outra, bem distinta, é causar dolosamente dano ambiental.

Quando o preso causa dano com o intuito de fugir, temos reiteradamente dito que o delito de dano não se configura, e isto me parece óbvio, pois no direito penal o que se incrimina é a intencionalidade dos fins. O que se tem nos autos é que o paciente não tinha onde morar e, incapaz de pagar o preço exorbitante que é praticado no Distrito Federal, viu-se na contingência de, como tantos outros, invadir área pública para construir sua moradia. É este um caso de política habitacional e não de política criminal. Lembremos que a via estrutural foi invadida, autoridades públicas retiraram com violência os ocupantes da área [houve mortes] e, afinal, rendeu-se à realidade: regularizou a posse e construiu ali uma cidade satélite.

Faço estas considerações para deixar evidente a insignificância da conduta, não apenas porque a área degradada é diminuta – 22 (vinte e dois) metros quadrados -, menor do que a área útil interna admitida no programa “Minha Casa Minha Vida”, que é de 32 (trinta e dois) metros quadrados [a informação está disponível emhttp:⁄⁄downloads.caixa.gov.br⁄ _arquivos⁄habita⁄mcmv⁄CASAS.pdf], quanto porque o dano à vegetação do cerrado, nesta dimensão, nada representa diante da relevância do direito de morar, garantido pela Constituição Federal como direito fundamental (art. 6º)

(…)

O Direito Penal não é a prima ratio. É subsidiário. Entra onde e quando não há solução provida por outros ramos do direito civil. Políticas habitacionais urbanas, além de outras iniciativas no campo do emprego e da renda podem muito bem suprir as necessidades sociais e evitar, assim, o cometimento de infrações penais e administrativas. Descabe incriminar alguém por haver construído sua moradia, pois chão e teto são as necessidades básicas da sobrevivência humana e constituem, assim, obrigação do Estado e direito do cidadão. Ainda mais: imputar a alguém reconhecidamente desprovido de ilustração (o acórdão reconheceu que o réu tem baixo grau de instrução ou de escolaridade) o dolo de praticar dano ambiental em contexto atinente ao suprimento de moradia é reconhecer o irreconhecível.

Faço uma última consideração. O dano ambiental provocado pelo paciente, além de desprovido de dolo, é insignificante. O crime é instantâneo, de efeitos permanentes, como o declara o acórdão. A permanência da casa no local não passa mesmo de ocupação irregular de área pública e, quanto a isso, temos, em caso idêntico, ótimo precedente:

Não prospera, ainda, a tese de que os ‘crimes são considerados de efeitos permanentes, cuja consumação se prolonga no tempo (fl. 228). Observa-se que o ora Recorrente, de modo equivocado, data venia, uniu os conceitos de crime permanente com o de crime instantâneo de efeitos permanentes. No primeiro, a consumação se protrai no tempo, conforme a vontade do sujeito ativo do delito, e, no segundo, as conseqüências duradouras não dependem do agente.

No caso em análise, seria um crime instantâneo de efeitos permanentes, já que existe a possibilidade de que as edificações erguidas no local tenham causado dano ambiental, que poderia ser permanente. Não se pode falar que a consumação se prolongou no tempo, mas sim os efeitos da pretensa conduta delituosa. (REsp-897.426 (Quinta Turma, Ministra Laurita Vaz, DJe de 28⁄4⁄2008.)

De todo o exposto, a ordem deve ser concedida, pois:

I – a conduta foi praticada antes da vigência da Lei n. 9.605⁄98;

II – o delito é instantâneo de efeitos permanentes;

III – a permanência da casa no local não configura o crime do art. 40 da Lei n. 9.605⁄98;

IV – o dolo de morar não é elemento subjetivo do crime de dano ambiental;

V – o dano causado pela edificação é insignificante, máxime quando confrontado com o direito de moradia;

VI – a baixa escolaridade do paciente, reconhecida pela Câmara julgadora, torna o agente incapaz de compreender que sua conduta seja capaz de provocar ‘redução da capacidade de regeneração do cerrado, pela redução dos propágulos vegetais e degradação de habitats’, afastando o dolo de fazer aquilo de que não se tem ciência.

Posto isso, concedo a ordem para restaurar a sentença absolutória.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO HAROLDO RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ⁄CE): 

Senhora Presidente, o voto do eminente Ministro Relator é muito claro. S. Exa. examinou com profundidade a matéria. Na verdade, eu não posso admitir que a construção de uma casa de 22 m² possa implicar na aplicação de uma pena a um pobre miserável que não tinha onde morar. O Sr. Ministro Relator demonstrou alta sensibilidade.

Acosto-me inteiramente ao voto de S. Exa., concedendo a ordem de habeas corpus para restaurar a sentença absolutória.” (destacamos)

 

N o t a s

 

            Assegurar a defesa do meio ambiente é uma das finalidades e um dos princípios gerais da Ordem Econômica e Financeira brasileira (CF, art. 170, VI), que não se poderá desenvolver em detrimento ao habitat natural do ser humano. Ordens para a sua preservação são emanadas em diversos trechos da Constituição Federal (arts. 5º, LXXIII; 23, VI; 24, VI e VIII; 129; 174, §3º; 186, II; 200, VIII; 220, §3º, II e outros), que ainda lhe reserva um Capítulo próprio (art. 225). A noção de perenidade do ambiente natural e a exigência inata – tanto no âmbito jurídico quanto no sociológico – de sua preservação resultam de um longo processo de amadurecimento humano, para o qual tem contribuído a evolução de estudos realizados em diversas áreas do conhecimento.

            Mas também é um princípio fundamental da nossa civilização o cuidado com o próprio ser humano. Os primeiros seis artigos da Constituição deixam claro que não se trata de uma defesa da pessoa humana isolada, mas sim, de uma cautela especial, que reconhece sua condição de ser social, para daí dessumir uma série de direitos e garantias próprias de uma nação civilizada e construída em bases de respeito democrático. Isso significa que não há como dissociar o ser humano do meio em que ele vive.

Não se trata de pesar os valores ou de medir importâncias. Não há balança ou régua adequadas para isso. Mas isso não significa que é impossível saber, ainda que de forma aproximada, quando um princípio sofre superproteção em prejuízo de outro. A presente decisão demonstra isso de forma clara.

Um ser humano pobre, que não tinha onde morar, mas tem esposa e filhos para arrimar, construiu, com as próprias mãos, uma casa de 22 metros quadrados para viverem. Era de tabique. Anos depois, reforçou-a com barro. Mais tarde, a autoridade pública, cumprindo com seus deveres, iniciou uma fiscalização na área e concluiu que a instalação daquela família causou danos à mata local e, contra o autor da construção, deflagrou uma ação visando a sua condenação a uma pena vai até cinco anos de reclusão. E o sujeito viu-se, assim, obrigado a sofrer as agruras do processo penal, que lhe absolveu em primeira instância, mas condenou-o na segunda.

A pena a que foi condenado (um ano e seis meses de penas restritivas de direitos) já estava em execução quando a impetração de um habeas corpus por um Defensor Público levou o STJ a restaurar a sentença absolutória de primeiro grau. Uma série de razões fundamentam o acórdão, tais como: a) a conduta foi praticada antes da entrada em vigor da lei dos crimes contra o meio ambiente; b) a impossibilidade de adequação típica objetiva da conduta; c) a ausência manifesta do dolo de causar dano.

Mas o fundamento principal parece ser o seguinte: “o dano à vegetação do cerrado, nesta dimensão, nada representa diante da relevância do direito de morar, garantido pela Constituição Federal como direito fundamental (art. 6º).” Ou seja, não somente o dano foi considerado irrelevante para fins criminais (subsidiariedade do Direito Penal), como se ressaltou o descaso com que Judiciário estava tratando um direito fundamental de uma pessoa. Punir o sujeito por não ter onde morar seria, nesse caso, desumano.

 

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