Crime militar: princípio da insignificância e Direito Penal mínimo

 

              A decisão a seguir ementada trata de uma das possibilidades de incidência do princípio da insignificância. Veja-se:

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PENAL. CRIME MILITAR. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. RECONHECIMENTO NA INSTÂNCIA CASTRENSE. POSSIBILIDADE. DIREITO PENAL. ULTIMA RATIO. CONDUTA MANIFESTAMENTE ATÍPICA. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. ORDEM CONCEDIDA.

1.  A existência de um Estado Democrático de Direito passa, necessariamente, por uma busca constante de um direito penal mínimo, fragmentário, subsidiário, capaz de intervir apenas e tão-somente naquelas situações em que outros ramos do direito não foram aptos a propiciar a pacificação social.

2. O fato típico, primeiro elemento estruturador do crime, não se aperfeiçoa com uma tipicidade meramente formal, consubstanciada na perfeita correspondência entre o fato e a norma, sendo imprescindível a constatação de que ocorrera lesão significativa ao bem jurídico penalmente protegido.

 3. É possível a aplicação do Princípio da Insignificância, desfigurando a tipicidade material, desde que constatados a mínima ofensividade da conduta do agente, a inexistência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a relativa inexpressividade da lesão jurídica. Precedentes.

4.  O Supremo Tribunal admite a aplicação do Princípio da Insignificância na instância castrense, desde que, reunidos os pressupostos comuns a todos os delitos, não sejam comprometidas a hierarquia e a disciplina exigidas dos integrantes das forças públicas e exista uma solução administrativo-disciplinar adequada para o ilícito. Precedentes.

 5. A regra contida no art. 240, § 1º, 2ª parte, do Código Penal Militar, é de aplicação restrita e não inibe a aplicação do Princípio da Insignificância, pois este não exige um montante prefixado.

6. A aplicação do princípio da insignificância torna a conduta manifestamente atípica e, por conseguinte, viabiliza a rejeição da denúncia.

7. Ordem concedida.”

 

(STF – HC 107638/PE – 1ª T. – Rel. Min. Cármen Lúcia – DJe de 29.9.11. Destacamos)

 

Os trechos do voto da Min. relatora, a seguir transcritos, evidenciam os fundamentos do acórdão:

RELATÓRIO

1. Habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de Jorge Cleiton Alves da Silva, apontando-se como autoridade coatora o Superior Tribunal Militar. 2. Noticia a Impetrante ter sido o Paciente denunciado na Auditoria da 7ª Circunscrição Judiciária Militar, porque no dia 2.10.2007, ‘no alojamento de soldados do quartel do Comando Militar em Recife, foram encontrados e apreendidos 20 (vinte) pacotes de flocão de milho, 20 (vinte) pacotes de macarrão, 20 (vinte garrafas de óleo e 78 (setenta e oito) pacotes de leite‘, avaliados em R$ 215,22 (duzentos e quinze reais e vinte e dois centavos).

(…)

VOTO

1. Os elementos fáticos e jurídicos apresentados nesta impetração autorizam a concessão da ordem. 2. A existência de um Estado Democrático de Direito passa, necessariamente, por uma busca constante de um direito penal mínimo, fragmentário, subsidiário, capaz de intervir apenas e tão-somente naquelas situações em que outros ramos do direito não foram aptos a propiciar a pacificação social. Nessa ordem de idéias, não mais se admite o crime como o fenômeno em que o fato típico, primeiro dos seus elementos estruturadores, aperfeiçoe-se com uma tipicidade meramente formal, consubstanciada na perfeita correspondência entre o fato e a norma. A pesquisa sobre a extensão da lesão ao bem jurídico penalmente protegido assume relevância, porque essa tarefa permite o delineamento da tipicidade material e, por conseguinte, a possibilidade de afastar do âmbito do direito penal aqueles comportamentos que, formalmente típicos, não representam ofensa significativa ao bem tutelado. O princípio da insignificância, também cunhado de crime de bagatela, instrumentaliza esse objetivo do direito penal contemporâneo, permitindo ao operador do direito otimizar a aplicação da lei penal, tornando-a efetivamente útil. (…) Este Supremo Tribunal admite a aplicação do princípio da insignificância, subordinando-a ao preenchimento, concomitantemente, de quatro fatores, a saber, (i) mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) nenhuma periculosidade social da ação; (iii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e (iv) relativa inexpressividade da lesão jurídica‘ (Habeas Corpus nº 102.940, relator o Ministro Ricardo Lewandowski, j. 15.2.2011). (…) No mesmo sentido, dentre outros, Habeas Corpus nº 102.210, relator o Ministro Joaquim Barbosa, j. 23.11.2010; Habeas corpus nº 98.152, relator o Ministro Celso de Mello, p. 5.6.2009; e Habeas Corpus nº 103.552, relator o Ministro Eros Grau, j. 1.6.2010.

Verifica-se que, mesmo em se tratando de delito militar, o Supremo Tribunal admite o princípio, desde que, reunidos aqueles pressupostos gerais, não sejam comprometidas a hierarquia e a disciplina exigidas dos integrantes das forças públicas e que a solução administrativo-disciplinar apresente-se como resposta adequada.

3. No caso dos autos, ao rejeitar a denúncia, a juíza-auditora enfatizou que o valor dos bens visados (R$ 215,22) era desproporcional à pena prevista (três a quinze anos de reclusão, cumulativamente com a pena acessória de exclusão das Forças Armadas), especialmente diante da inexistência de qualquer prejuízo à União e da ‘possibilidade de aplicação da sanção disciplinar, o que evita restem comprometidas a hierarquia e a disciplina, princípios basilares das Forças Armadas‘ (evento 2, p. 3). No Tribunal Superior Militar, o voto vencido enfatizou que os gêneros alimentícios eram ‘sobras do rancho para ajudar sua (do Paciente) família que estava em necessidade, no interior de Pernambuco‘ (…), cuja falta sequer fora notada pelos responsáveis pelo depósito de alimentos do rancho daquela OM (…)’ (evento 2, p. 17 e 19)

Poder-se-ia ponderar, como o fez a Procuradoria-Geral da República, que o valor dos bens era expressivo se comparado àquele previsto no art. 240, § 1º, 2ª parte, do Código Penal Militar (Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou considerar a infração como disciplinar. Entende-se pequeno o valor que não exceda a um décimo da quantia mensal do mais alto salário mínimo do país). A regra invocada é de aplicação restrita e não inibe o reconhecimento da atipicidade da conduta por força do princípio da insignificância, mesmo porque não existe um valor prefixado para a sua viabilização. Em pesquisa no acervo jurisprudencial deste Supremo Tribunal, verifica-se o reconhecimento da incidência do princípio da insignificância em casos de furto de ‘cadeiras de palha avaliadas em R$ 91,00‘ (Habeas Corpus nº 96.688, Relatora a Ministra Ellen Gracie, p. 29.5.2009); de ‘aparelho celular’ avaliado em ‘R$ 150,00‘ (Habeas Corpus nº 96.496, Relator o Ministro Eros Grau, p. 22.5.2009); de ‘mochila‘ avaliada em ‘R$ 154,57‘ (Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 89.624, de minha relatoria, p. 7.12.2006); de ‘roda sobressalente com pneu de automóvel estimados em R$ 160,00‘ (Habeas Corpus nº 93.393, Relator o Ministro Cezar Peluso, p. 15.5.2009); e de ‘roupas‘ avaliadas em ‘R$ 270,00‘ (Habeas Corpus nº 95.957, Relator o Ministro Celso de Mello, p. 31.10.2008).

(…)

Nesse contexto, é impróprio considerar penalmente relevante a conduta do Paciente, quer sob o prisma da lesão ao patrimônio, que inexistiu, pois todos os gêneros alimentícios foram recuperados, quer sob o enfoque da administração militar, que não se alcançou em razão da pronta atuação dos agentes da caserna e da possibilidade de instauração de procedimento administrativo.

O fenômeno da tipicidade exige a conjugação das matizes formal e material, pelo que ausente esta ou mesmo aquela, o comportamento do agente será manifestamente atípico e, como tal, ensejará a rejeição da denúncia.

O Estado não pode valer-se do Direito Penal, instrumento de controle notadamente rígido, para se ocupar de condutas sem expressão material. Ele é a ultima ratio para a prevenção de comportamentos delituosos e, ‘considerada a intervenção mínima do Estado, não deve ser acionado para reprimir condutas que não causem lesões significativas aos bens juridicamente tutelados‘ (Habeas Corpus nº 96.496, relator o Ministro Eros Grau, p. 25.5.2009)

4. Pelo exposto, encaminho a votação no sentido de conceder a ordem, mantendo a rejeição da denúncia, nos termos da decisão de primeira instância, e, por conseguinte, cassando o acórdão do Superior Tribunal Militar.

É o meu voto.” (destacamos)

 

N o t a s

 

            O STF retoma, na decisão acima, um fundamento marcante do princípio da insignificância, para estabelecer que mesmo uma conduta formalmente ofensiva à administração militar pode ser penalmente irrelevante quando estiverem ausentes os pressupostos mínimos dessa forma de intervenção estatal. Trata-se da noção do Direito Penal como ultima ratio do sistema jurídico, isto é, como a modalidade de controle social mais grave – e, por isso, excepcional de que dispõe a civilização.

            Partindo dessa premissa, a natureza do bem jurídico em questão, se considerada isoladamente, deixa de ser uma circunstância suficiente para a conclusão pela relevância ou irrelevância penal da conduta. Ou seja: não se pode sustentar que a administração pública, a ordem tributária, o meio ambiente, a saúde pública e outros bens jurídicos, por serem de grande importância, nunca poderiam ser alvo de um dano socialmente insignificante. Efetivamente, em todos esses casos a jurisprudência já houve por bem reconhecer que podem sê-lo.

            A decisão ainda fixa, corretamente, que “não existe um valor prefixado” para a aplicação do princípio em questão. Essa lógica está de acordo com o entendimento recente do STJ, segundo o qual a padronização de um limite material “pode levar a conclusões iníquas, porque dissociadas de todo um contexto fático” (Resp 1218765/MG – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJe 14.9.11). Assim é que o critério pecuniário, em cada caso concreto, pode variar bastante – basta conferir os exemplos fornecidos na decisão acima.

            Em realidade, a pauta jurisprudencial rotineira tem reforçado os critérios determinantes para a aplicação desse princípio: (i) mínima ofensividade da conduta do agente; (ii) nenhuma periculosidade social da ação; (iii) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e (iv) relativa inexpressividade da lesão jurídica.” Não há como, portanto, vislumbrar óbices generalizantes ao citado princípio. Especialmente na seara criminal.

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