Crime de licitação e regularidade atestada pelo TC: ausência de justa causa

 

              A decisão abaixo trata do crime de dispensa irregular de licitação:

 

2. Pacientes, ex-prefeito e ex-secretária municipais, denunciados pela suposta prática do crime previsto no art. 89, caput, da Lei 8.666/93. 3. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo que, instado a  manifestar-se sobre a lisura do procedimento, entendeu regulares a inexigibilidade de licitação e o contrato firmado. 4. Necessidade de o MP reunir elementos concretos que atestem a real necessidade de iniciar a persecução penal, mormente indicativos de que a Corte de contas, ao apreciar o feito, equivocou-se em sua conclusão. 5. Ausência de justa causa caracterizada. Trancamento da ação penal. 6. Ordem concedida de ofício.”

(STF – HC 107263/SP – 2ª T. – Rel. Min. Gilmar Mendes – DJe de 5.9.11. Destaques não originais)

 

A solução dada pelo STF, como se vê, foi excepcional. Leia-se o voto do Ministro relator:

 

“O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator): No presente habeas corpus, a defesa requer a concessão da ordem a fim de que seja trancada a ação penal. (…)

No ponto, cumpre ressaltar que a regra é a licitação, a qual só será dispensada, dispensável ou inexigível nos casos expressamente previstos em lei. Tal a importância desse postulado, que o art. 89 da Lei 8.666/93 eleva a status de crime a conduta de ‘dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade’.

No caso, os pacientes (Wagner Bruno e Regina Célia Custódio Panccioni, respectivamente ex-prefeito e ex-secretária municipais) foram denunciados, em 12.5.2008, pela suposta prática do crime previsto no art.

89, caput, da Lei 8.666/1993, pois teriam, no período compreendido entre

30 de janeiro de 2004 e 17 março de 2004, na Prefeitura Municipal de Avaré, deixado de exigir licitação fora das hipóteses previstas em lei. (…)

Consoante se depreende dos termos da inicial, não há que se falar de inépcia da denúncia, porquanto esta descreve, satisfatoriamente, a existência do crime em tese, bem como o envolvimento dos pacientes, demonstrando elementos suficientes para deflagração da persecução penal.

Nesses termos, encaminhar-me-ia no sentido de indeferir a ordem de habeas corpus. Ocorre, porém, que o caso guarda peculiaridades que merecem maiores considerações. De início, registro que o requerimento de trancar a ação penal por ausência de justa causa não foi analisado na origem. Contudo, merece conhecimento, por ser patente o constrangimento ilegal sofrido.

No que concerne à inexigibilidade de licitação, considerada a impossibilidade de competição, cumpre destacar que consignam os autos

que, no momento da celebração do contrato, não havia empresas especializadas para fornecimento de serviços de informática educativa, necessários à implantação de informática educacional na rede municipal

de ensino.

Na época (20.6.2005), o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, instado a manifestar-se quanto à lisura do procedimento, entendeu regular a inexigibilidade de licitação e o contrato firmado. (…) No ponto, ressalto não desconhecer jurisprudência remansosa de ambas as turmas e também do Plenário desta Corte que assenta serem independentes a esfera penal e a administrativa: HC 97.657/RJ, rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJe 20.5.2010; RMS 26.510/RJ, rel. Min. Cezar Peluso, Pleno, DJe 25.3.2010; AGR/AI 713.157/DF, rel. Min. Cármen

Lúcia, Primeira Turma, DJe 12.12.2008; HC 88.759/ES, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ 23.2.2007.

Nesse sentido, levando em conta a independência das esferas, o julgamento proferido pelo Tribunal de Contas dando por regular o procedimento administrativo não teria o condão de inviabilizar, primo ictu oculi, a propositura da ação penal pelo Ministério Público. Todavia, o caso para mim é peculiar.

É que o art. 89 da Lei 8.666/93 dispõe como conduta criminosa o ato

de ‘dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade’. Dessarte, indago: Concluindo o Tribunal de Contas pela lisura do procedimento, haveria justa causa para a persecução penal? Em tese, sim. Contudo, tenho para mim que a aprovação do procedimento pelo Tribunal de Contas vem a exigir do Ministério Público esforço maior no encargo de reunir elementos concretos que atestem a real necessidade de iniciar a persecução penal, mormente indícios de que a Corte de Contas, ao apreciar o feito, equivocou-se na conclusão.

Entretanto, essa premissa não se deu por aqui, o que, para mim, vem caracterizar constrangimento ilegal e, portanto, flagrante falta de justa causa para prosseguimento da persecução penal. (…) Conforme tenho repetido reiteradamente, não se deve banalizar a persecução criminal, pois tal atitude está a afrontar, também, o princípio da dignidade da pessoa humana que, entre nós, tem base positiva no artigo 1º, III, da Constituição Federal.” (destacamos)

 

N o t a s

 

            A decisão merece destaque por mais de um motivo. Primeiro: embora reconhecendo a excepcionalidade de uma ordem de trancamento de ação penal, o STF se permitiu avançar no estudo do caso, respeitando, com isso, a real possibilidade de que ele se amolde às exigências jurisprudenciais que lhe garantam tal condição excepcional; segundo: o pedido de trancamento da ação penal não havia sido analisado na instância inferior, o que, a princípio, poderia impedir o conhecimento de tal pedido por supressão de instância (Súmula 691/STF). No entanto, corretamente, a Corte considerou que há evidente constrangimento ilegal e que, por isso, a ação constitucional originária pôde ser conhecida; terceiro: tratou, com objetividade e coerência, acerca da independência das esferas administrativa e judicial – tema que geralmente é mal compreendido.

            Efetivamente, as esferas são independentes. Nunca houve razão para negar isso. Na realidade, trata-se, primeiramente, de reconhecer essa independência para, somente após, conferir a cada qual a autonomia devida em sua respectiva área de atuação. Essa lógica é, inclusive, reforçada pelo julgamento do STF no HC 81611 e pelo teor da Súmula Vinculante 24 – em que se estabeleceu a necessidade de exaurimento da via administrativa como condição para o aforamento de ação penal por crime de sonegação fiscal. E isso não deve valer apenas para essa espécie de crime.

            Em crimes contra a ordem tributária, o respeito que hoje se devota à decisão final do Fisco é, antes de mais nada, fundada no bom senso: se a Receita afirma, no processo administrativo, que o contribuinte não deve nada, mas a Justiça criminal entende por bem condenar o mesmo contribuinte por ter sonegado tributo, então, há uma quebra do sistema político-jurídico. Não pode o Estado conferir, simultaneamente, estados de direito diferentes ao mesmo fato. Ou o cidadão deve ou não deve – máxime quando se alega possível crime, quando se deve evitar a banalização da persecução criminal. A exceção, aqui, excepciona o próprio Estado de Direito. É isso o que frisou, com outras palavras, a decisão em questão.

            Ocorre que essa exigência de coesão sistêmica existirá sempre que dois âmbitos do Estado forem provocados a proferir interpretações que gerem efeitos sobre o mesmo fato – como no caso concreto. Ora, se o Tribunal de Contas, órgão legalmente competente e aparelhado especificamente para avaliar a regularidade das contas e de procedimentos licitatórios, decide que não há qualquer irregularidade, o Judiciário, caso profira sentença condenatória, terá que afirmar que o Tribunal de Contas estava errado. E isso seria grave. Mas isso quer dizer que, nesse caso, seria impossível uma denúncia pelo crime de licitação? Não. Isso quer dizer que, como frisou o STF, o Ministério Público, ao invés de simplesmente desconsiderar a decisão na esfera administrativa, deverá, em sua denúncia, descrever os motivos de fato e de Direito pelos quais entende que o Tribunal de Contas se equivocou em sua conclusão – trata-se, inclusive, de respeito institucional à autoridade administrativa. E, se isso for possível, a decisão do TC deverá ser revista, para que jamais subsistam duas interpretações conflitantes sobre o mesmo fato, sob pena de abandono da noção hoje vigente de ordenamento jurídico.

 

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