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             A ementa abaixo transcrita resume mais um caso de erro de acusação em crimes ambientais. Veja-se:

  

HABEAS CORPUS. CRIME AMBIENTAL (ARTIGO 62, INCISO I, DA LEI 9.605⁄1998). TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. CONDUTA ATRIBUÍDA AO PACIENTE QUE NÃO SE SUBSUME AOS NÚCLEOS DO TIPO PENAL. ATIPICIDADE MANIFESTA. CONCESSÃO DA ORDEM.

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1. No caso dos autos, se imputa ao paciente o crime disposto no artigo 62, inciso I, da Lei 9.605⁄1998, consistente em ‘destruir, inutilizar ou deteriorar bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial‘.

2. De acordo com a exordial acusatória, o paciente teria omitido o fato de que havia sítio arqueológico em terrenos de sua propriedade que foram vendidos para terceiros, além de ter fornecido aos adquirentes projeto de empreendimento imobiliário que, depois de implementado, resultou na destruição da área ambientalmente protegida.

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3. Não havendo indicação de qual ou quais núcleos do tipo do artigo 62, inciso I, da Lei 9.605⁄1998 teriam sido praticados pelo paciente, constata-se a absoluta atipicidade da conduta que lhe foi imputada, já que não restaram narradas na inicial sequer as elementares objetivas do ilícito em questão.

4. O aludido delito é comissivo, ou seja, demanda a prática de ações para que reste consumado, sendo insuficiente para a sua caracterização a simples omissão do agente, de modo que a conduta do paciente de não informar aos adquirentes a existência de sítio arqueológico nos terrenos alienados não se subsume ao tipo em análise.

5. Mesmo que se pudesse considerar o comportamento omissivo do paciente como a caracterizar o delito ambiental em comento, há que se ter presente que a sua conduta foi irrelevante para a consecução do resultado, já que ele não tinha o dever de informar os compradores, no ato da venda dos terrenos, acerca da existência de sítio arqueológico que deveria ser preservado, motivo pelo qual eventual aplicação da alínea ‘c’ do § 2º do artigo 13 do Estatuto Repressivo se daria em exacerbada elasticidade, pois a partir do momento em que houve a alienação das propriedades, ele já não tinha mais como evitar o resultado, um dos requisitos para que se tenha presente a condição de garante.

6. O simples fornecimento aos novos proprietários de projeto de empreendimento imobiliário não pode ser tido como suficiente a caracterizar o crime em análise, uma vez que o paciente não teria como prever ou antever a efetiva utilização das plantas pelos adquirentes dos terrenos e, consequentemente, a destruição, inutilização ou deterioração do sítio arqueológico.

7. Ordem concedida para trancar a ação penal deflagrada contra o paciente.”

 

(STJ – HC 134409/SP – 5ª T. – Rel. Min. Jorge Mussi – DJe de 1º.9.11. Destacamos)

 

Da íntegra da acórdão, extraem-se as seguintes passagens do voto do Min. Relator:

 

“Conforme relatado, com este habeas corpus pretende-se, em síntese, o trancamento da ação penal instaurada contra o paciente, ante a alegada atipicidade da conduta que lhe teria sido atribuída na denúncia. Segundo consta dos autos, o paciente foi acusado de praticar crime ambiental, extraindo-se da peça acusatória os seguintes trechos: 

O denunciado adquiriu um terreno localizado na esquina da Rua Zabumba com a Rua Jacundá, no bairro do Morumbi, nesta Capital e, com intuito de iniciar uma incorporação imobiliária, também adquiriu o terreno vizinho ao seu. Visando implementar um projeto imobiliário que elaborou (construção de 04 casas), buscou adquirir outros três terrenos vizinhos ao seu lote, momento em que tomou conhecimento, em contato com o IPHAN, de que o lote que havia adquirido, bem como dois dos demais lotes que visava adquirir, eram protegidos por registro, nos moldes do artigo 27, da Lei 3.924⁄61 (fls. 09⁄10 e fls. 200⁄206), porque se tratavam de sítios arqueológicos. Assim, em 2001, obteve autorização do IPHAN para o resgate arqueológico em seu lote, através da Portaria nº 51, de 18 de junho de 2001 (fls. 210), já que o artigo 3º da referida lei impõe a devida pesquisa do sítio arqueológico, como condição para o aproveitamento econômico (fls. 208⁄209 e fls. 127). Realizado o resgate, o denunciado foi cientificado de que, por imposição legal (artigo 22, parágrafo único, da mesma lei, deveria resguardar o ‘bloco testemunho’, consistente na manutenção de faixa de 02 metros de largura por 25,94 metros de comprimento, área de 51,88 m², livre de intervenção de sub-superfície, com construção de muro de proteção (fls. 208⁄209). Na mesma época, obteve alvará junto à Prefeitura de São Paulo para a construção, em todos os lotes, de empreendimento imobiliário com 08 (oito) casas. Como ainda não era proprietário de todos os lotes, obteve procuração dos proprietários e do inventariante de um deles para tanto. Todavia, em razão da falta de recursos, decidiu alienar os terrenos, negociando todos os lotes com os adquirentes Luís Ache Maia Fragali Álvaro Luís Teixeira, sócios da FACT-Incorporação Imobiliária Ltda, os quais buscavam adquirir uma área para incorporação imobiliária. Nesta negociação, o denunciado omitiu dolosamente o fato de que havia sítio arqueológico nos lotes em questão, tendo confessado que não mencionou a existência do sítio arqueológico no local, com medo de que os compradores desistissem do negócio (fls. 128). Outrossim, o denunciado forneceu aos adquirentes dos lotes o referido projeto de empreendimento imobiliário, assumindo, assim, o risco de destruição do sítio pela implementação do projeto. Tanto é assim, que este projeto imobiliário foi, de fato, utilizado em parte pelos sócios da FACT-Incorporação Imobiliária Ltda para a elaboração de um outro projeto, o qual, quando implementado, destruiu o sítio arqueológico. Assim sendo, evidencia-se, no mínimo, dolo eventual na conduta do denunciado. Isto porque, sabia da existência de sítio arqueológico naqueles lotes e da necessidade de resgate para o aproveitamento econômico, além da preservação do bloco de testemunho em seu lote. Também sabia que a construção do empreendimento, com o projeto por ele fornecido, destruiria o sítio arqueológico lá existente, acarretando dano ao patrimônio cultural nacional. Apesar disso, não informou aos adquirentes da presença do sítio arqueológico no local. (fls. 30⁄31).

A inicial foi recebida em 14.12.2006, tendo o magistrado de origem dado vista dos autos ao órgão ministerial ‘a fim de precisar a data dos fatos supostamente delituosos, a teor da conduta descrita no tipo legal mencionado na denúncia‘ (fl. 319). O Ministério Público Federal ofereceu, então, aditamento à exordial, lançado nos termos abaixo transcritos:

 ‘Em 09 de maio de 2003, Luiz Martinez Neto vendeu o imóvel onde está situado o sítio arqueológico do Morumbi a Fact Incorporação e Investimentos Ltda,representada por Luiz Martinez, conforme se depreende através da escritura de venda e compra de fl. 80 v°. De acordo com ofício Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de fl. 17, o delito em questão somente foi descoberto em setembro de 2004, data em que referido Instituto realizou diligência no local dos fatos e constatou a existência de uma obra, providenciando o embargo da mesma. Embora a obra tenha sido embargada em 27 de setembro de 2004 (fl. 152⁄153), de acordo com o termo de declarações prestadas por Álvaro Luis Teixeira, atualproprietário do terreno que abrange o sítio lítico (fls. 253⁄256), o embargo ocorreu após um ano do início das obras. Assim, é possível afirmar que a data aproximada do início das obras que destruíram o sítio lítico do Morumbi é setembro de 2003.  (fls. 333⁄334).

 Após o recebimento do aditamento (fl. 336), foi impetrado habeas corpus em favor do paciente perante a Corte a quo, tendo a ordem sido denegada em acórdão que foi assim resumido:

 ‘HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. CRIME AMBIENTAL. ARTIGO 62, I DA LEI Nº 9.605⁄98. DESTRUIÇÃO DE SÍTIO ARQUEOLÓGICO. ATIPICIDADE DA CONDUTA DO RÉU AFASTADA. AUTORIA MEDIATA RECONHECIDA. EXAME APROFUNDADO DE PROVAS.DESCABIMENTO NA VIA SUMÁRIA DO ‘WRIT’. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. ORDEM DENEGADA.

1 – Os elementos de convicção que embasaram a denúncia permitiram concluir que a conduta do paciente se mostrou em tese dirigida para a realização dos verbos destruir, inutilizar ou deteriorar bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, inscrito no inciso I do artigo 62 da Lei nº 9.605⁄98, em hipótese de autoria mediata, que restou em tese verificada ao sonegar dos adquirentes do imóvel a informação cerca da existência do sítio arqueológico no terreno, fazendo-os dar continuidade a projeto cujas obras tinha conhecimento que acarretariam a sua destruição.

2 – O habeas corpus não constitui via adequada ao pronunciamento acerca da responsabilidade criminal do paciente, quando a controvérsia envolver o exame aprofundado do conjunto probatório.

3 – Evidenciada na ação penal subjacente a existência de justa causa para sua instauração, com a existência de crime em tese e indícios suficientes de autoria.

3. Ordem denegada. Liminar revogada.’ (fl. 432).

 Após o trânsito em julgado do mandamus originário, a defesa apresentou resposta preliminar (fls. 453⁄456), tendo sido designada audiência para a propositura de suspensão condicional do processo (fl. 463), a qual não foi realizada diante da concessão de liminar por este Sodalício no presente writ.

Pois bem.

De tudo quanto consta dos autos, tem-se que a ordem deve ser concedida. Como é cediço, o trancamento de ação penal é medida excepcional, só admitida quando restar provada, inequivocamente, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático ou probatório, a atipicidade da conduta, a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, ou, ainda, a ausência de indícios de autoria ou de prova da materialidade do delito. (…) 

Na hipótese dos autos, da leitura da inicial acusatória verifica-se a manifesta atipicidade da conduta imputada ao paciente. Como se sabe, vige no Direito Penal o princípio da legalidade, pelo qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem a imposição de pena sem prévia cominação legal, consoante o disposto nos artigos 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, e 1º do Estatuto Repressivo: (…). 

Quando há a criminalização de determinada conduta, com a imposição da respectiva sanção, surge o tipo penal, definido por Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli como ‘um instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes (por estarem penalmente proibidas)‘ (Manual de Direito Penal Brasileiro. v. 1. Parte Geral. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 383). Assim, praticada determinada conduta em tese ilícita pelo agente, é preciso analisar se ela se amolda aos tipos penais existentes no ordenamento jurídico pátrio, vale dizer, é necessário averiguar a tipicidade formal da ação ou omissão, requisito indispensável para que se possa considerar certo fato como criminoso. Tem-se, por conseguinte, que tipo e tipicidade não se confundem, sendo o primeiro o modelo legal de conduta proibida pelo Estado, ao passo que a segunda consiste na adequação entre um comportamento concretamente adotado pelo agente e algum tipo penal existente. (…)

No caso dos autos, como visto, se imputa ao paciente o crime disposto no artigo 62, inciso I, da Lei 9.605⁄1998, verbis: ‘Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar: I – bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial; (…) Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.’

 Como se pode verificar da redação do tipo legal em exame, são três as condutas incriminadas pelo legislador, quais sejam, destruir, inutilizar ou deteriorar bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial. Ao discorrer sobre o tipo objetivo do ilícito em tela, Renato Marcão esclarece que ‘destruir é o mesmo que arruinar, devastar, eliminar, extinguir‘, ao passo que ‘inutilizar significa destruir, danificar, de molde a deixar inútil, sem utilidade, sem serventia‘, e ‘deteriorar é pôr em mal estado ou em pior condição, tornando cada vez mais sem serventia; danificar, estragar‘ (Crimes ambientais. Anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei n. 9.605, de 12-2-1998). Contudo, da leitura da exordial acusatória constata-se que o paciente foi acusado da prática do delito previsto no inciso I do artigo 62 da Lei 9.605⁄1998 porque teria omitido o fato de que havia sítio arqueológico em terrenos de sua propriedade que foram vendidos para terceiros, além de ter fornecido aos adquirentes projeto de empreendimento imobiliário que, depois de implementado, resultou na destruição da área ambientalmente protegida. Ora, à toda evidência as condutas em tese praticadas pelo paciente e descritas na denúncia não se adaptam ao tipo do artigo 62, inciso I, da Lei 9.605⁄1998.

Com efeito, o Ministério Público Federal não relatou na peça vestibular como o paciente teria destruído, inutilizado ou deteriorado o sítio arqueológico em questão, apenas descrevendo que ele teria omitido a existência da área de proteção ambiental ao alienar os lotes, bem como fornecido aos adquirentes projeto de construção com potencial de acarretar dano ao patrimônio cultural nacional, condutas que, por óbvio, não podem ser equiparadas àquelas previstas no tipo penal em exame. Desse modo, não tendo o órgão ministerial indicado qual ou quais núcleos do tipo do artigo 62, inciso I, da Lei 9.605⁄1998 teriam sido praticados pelo paciente, constata-se a absoluta atipicidade da conduta que lhe foi imputada, já que não restaram narradas na inicial sequer as elementares objetivas do ilícito em questão. (…)

É que, frise-se, a simples omissão da informação de que existiria área de proteção ambiental nos lotes alienados pelo paciente, bem como a entrega aos novos proprietários de projeto de empreendimento imobiliário que poderia acarretar danos ambientais não são suficientes para configurar o crime em tela, que pressupõe a prática de uma das três ações descritas no tipo penal, quais sejam, destruir, inutilizar ou deteriorar bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial. Quanto ao ponto, é preciso ressaltar que o delito previsto no inciso I do artigo 62 da Lei 9.605⁄1998 é comissivo, ou seja, demanda a prática de ações para que reste consumado, sendo insuficiente, para a sua caracterização, a simples omissão do agente. (…)

Dessa forma, a conduta do paciente de omitir ou não informar aos adquirentes a existência de sítio arqueológico nos terrenos alienados não se subsume ao tipo descrito no artigo 62, inciso I, da Lei 9.605⁄1998, que expressamente se refere às ações de destruir, inutilizar ou deteriorar bem protegido. Ademais, mesmo que se pudesse considerar o comportamento omissivo do paciente como a caracterizar o delito ambiental em comento, há que se ter presente que a sua conduta foi irrelevante para a consecução do resultado. No ponto, é preciso assinalar que a conduta de não comunicar aos novos proprietários dos terrenos adquiridos a existência de área de proteção ambiental no local poderia em tese configurar crime omissivo impróprio ou comissivo por omissão, no qual o agente só pode ser punido se ostentar a posição de garante, nos termos doartigo 13, § 2º, do Código Penal, verbis: ‘Art. 13 – O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual oresultado não teria ocorrido. Relevância da omissão § 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.‘ 

Na hipótese em apreço, o paciente não tinha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, tampouco assumiu a responsabilidade de impedir o resultado, de modo que só poderia ser incriminado se com seu comportamento houvesse criado o risco da ocorrência do resultado. Contudo, o que se extrai dos autos é que o paciente não tinha o dever de informar os compradores, no ato da venda dos terrenos, acerca da existência de sítio arqueológico que deveria ser preservado, motivo pelo qual eventual aplicação da alínea ‘c’ do § 2º do artigo 13 do Estatuto Repressivo se daria em exacerbada elasticidade, pois a partir do momento em que houve a alienação das propriedades, ele já não tinha mais como evitar o resultado, um dos requisitos para que se tenha presente a condição de garante. (…)

Logo, após alienar os lotes nos quais localizada a área de proteção ambiental, o paciente, ainda que ostentasse a condição de garante, não tinha mais como agir de modo a impedir a destruição do sítio arqueológico em questão, o que reforça a total improcedência de sua responsabilização penal pelos fatos.

Ainda que assim não fosse, o simples fornecimento, aos novos proprietários, de projeto de empreendimento imobiliário não pode ser tido como suficiente a caracterizar o crime em análise, uma vez que o paciente não teria como prever ou antever a efetiva utilização das plantas pelos adquirentes dos terrenos e, consequentemente, a destruição, inutilização ou deterioração do sítio arqueológico.

Portanto, ao contrário do que assinalado pelo Ministério Público na denúncia, não se pode afirmar que, ao entregar aos adquirentes do lote projeto de empreendimento imobiliário, o paciente assumiu o risco de destruição do sítio pela sua implantação. Com efeito, diversamente do que consignado pelo órgão acusatório na peça vestibular, não se pode concluir que o paciente teria assumido o risco da destruição do patrimônio cultural ante a implementação do projeto de construção de casas nos lotes, pois, como destacado na própria inicial, o acusado tinha como único propósito a venda dos terrenos ante a impossibilidade de neles construir por falta de recursos (fls. 30⁄31).

Em arremate, é imperioso destacar que os responsáveis pela efetiva destruição, inutilização ou deterioração do sítio arqueológico existente nas propriedades vendidas não foram sequer denunciados pelo Ministério Público, o que reforça a impossibilidade de acusar o paciente pelos fatos. Isso porque só se poderia admitir a responsabilidade do paciente pelo ilícito em apreço sem que ele houvesse praticado quaisquer das condutas previstas no respectivo tipo penal caso ele tivesse, de qualquer modo, concorrido para o crime praticado por outrem, na condição de coautor ou partícipe, nos termos do artigo 29 do Código Penal. Consequentemente, não tendo os verdadeiros autores da destruição, inutilização ou deterioração do sítio arqueológico sido denunciados pela suposta prática do crime previsto no artigo 62, inciso I, da Lei 9.605⁄1998, não se pode atribuí-lo unicamente ao paciente, cuja conduta sequer se subsume aos núcleos do tipo penal em análise.

Resta patente, portanto, a atipicidade da conduta atribuída ao paciente, não sendo possível responsabilizá-lo penalmente pela destruição, inutilização ou deterioração do sítio arqueológico existente nos lotes por ele vendidos a terceiros.

Ante o exposto, concede-se a ordem para trancar a ação penal deflagrada contra o paciente.

É o voto.” (destacamos)

 

N o t a s

 

            A tutela criminal de bens jurídicos imateriais acarreta abusos de acusação como o acima narrado. É claro que é necessário reprimir atentados à saúde pública, à segurança nacional, à ordem tributária e ao meio ambiente, mas isso não significa que a repressão deva ser sempre de ordem criminal, tampouco que se permite desconsiderar os limites lógicos dos verbos descritos no tipo legal para punir mais rigorosamente qualquer conduta humana que possa ter tido relação com o (imaginado) prejuízo.

            No caso em comento, o cidadão vendeu alguns terrenos a pessoas interessadas em neles realizar uma construção. O vendedor sabia que havia uma necessidade de preservação de um sítio arqueológico no local, mas deixou de avisar os interessados, que acabaram por implementar o projeto e danificar a área. Por isso, foi acusado criminalmente pelo crime de “destruir”, “deteriorar” ou “inutilizar” o bem que deveria ser preservado.

            Mas, primeiramente, indaga-se: quem praticou a conduta de “destruir”, “deteriorar” ou “inutilizar”? Em segundo lugar: por quê não foram eles os denunciados? Em terceiro lugar: não dispunham eles de meios para averiguar se poderiam construir ali? Quarto: não tinham eles, desde que interessados na obra, o dever de fazer tal averiguação? As respostas a essas perguntas são muito simples e conduzem à solução determinada pelo STJ.

            Se perseverasse a condenação, estar-se-ia diante de um sério risco de extraordinário alargamento da responsabilização criminal no Brasil. Efetivamente, responsabilizar o vendedor do lote por um ato que foi praticado pelo comprador é como pretender culpar a construtora por um ato de um dos condôminos (após a entrega regular da obra).

Isso não só porque, aqui, o tipo penal não prevê conduta omissiva ou porque o vendedor não tinha a obrigação legal de advertir o comprador, mas, também, porque lhe era absolutamente imprevisível o que o comprador faria no terreno depois que ele o adquiriu. Mesmo que a ideia de realizar um empreendimento houvesse sido aventada, o fato é que qualquer coisa poderia antes acontecer que alterasse o curso dos fatos. Uma delas seria, p.ex., a efetivação da necessária due diligence pelos empreendedores, que indicaria a existência do sítio arqueológico no local.

O interesse o vendedor era, simplesmente, realizar a venda e não deteriorar o meio ambiente. Quem tinha o dever de zelar por ele era quem tinha a intenção de realizar a conduta que poderia danificá-lo. E, por óbvio, a simples relação de compra e venda, nesse contexto, é inofensiva.