Casa de prostituição: aceitação social e descriminalização

            A decisão cuja ementa segue cuida do peculiar e progressivo fenômeno da descriminalização de uma conduta tipificada em lei. Veja-se:

“PENAL. RECURSO ESPECIAL. CASA DE PROSTITUIÇÃO. TIPICIDADE CARACTERIZADA. EVENTUAL TOLERÂNCIA SOCIAL OU MESMO DAS AUTORIDADES PÚBLICAS OU POLICIAIS NÃO DESCRIMINALIZA A CONDUTA DELITUOSA LEGALMENTE PREVISTA. INAFASTABILIDADE DA TIPICIDADE PRECONIZADA PELO LEGISLADOR. PRECEDENTES. ENTENDIMENTO DO TRIBUNAL DE ORIGEM EM CONTRASTE COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ.

1. Este Sodalício firmou orientação no sentido de que eventual tolerância social ou mesmo das autoridades públicas e policiais não descriminaliza a conduta tipificada no artigo 229, do Código Penal. 2. Recurso especial provido para cassar o v. acórdão e a r. sentença.”

(STJ – REsp 1102324/RS – Rel. Des. Conv. do TJRJ Adilson Vieira Macabu – DJe de 22.8.11)

 

            Do corpo do acórdão, lê-se:

“(…)

Trata-se de recurso especial interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, com fundamento nas alíneas ‘a’ e ‘c’ do inciso III do artigo 105 da Constituição da República, contra v. acórdão do e. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, assim ementado, in verbis:

‘CRIME CONTRA OS COSTUMES. I – RECURSO DA DEFESA. FAVORECIMENTO DA PROSTITUIÇÃO QUALIFICADO. ART. 228, CAPUT E §§ 1º E 3º, DO CÓDIGO PENAL. FACILITAÇÃO. 1. RECURSO DEFENSIVO: A denunciada, com o objetivo de obtenção de lucro, favoreceu a prostituição, na forma do verbo nuclear ‘facilitar’, ao manter, especialmente adolescentes, em sua casa de prostituição; ao dar abrigo, alimentação, emprestar quartos às vítimas e ao cobrar aluguel dos quartos aos clientes do local para encontros libidinosos, bem como vender bebidas a estes. Facilitar significa prestar auxílio, criar condições, tornar fácil ou acessível a prática de prostituição. II 2. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CASA DE PROSTITUIÇÃO. ATIPICIDADE. À sociedade civil é reconhecida a prerrogativa de descriminalização do tipo penal configurado pelo legislador. A eficácia da norma penal nos casos de casa de prostituição mostra-se prejudicada em razão do anacronismo histórico, ou seja, a manutenção da penalização em nada contribui para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, e somente resulta num tratamento hipócrita diante da prostituição institucionalizada com rótulos como ‘acompanhantes’, ‘massagistas’, motéis, etc, que, ainda que extremamente publicizada, não sofre qualquer reprimenda do poder estatal, em razão de tal conduta, já há muito, tolerada, com grande sofisticação, e divulgada diariamente pelos meios de comunicação, não é crime, bem assim não será as de origem mais modesta. 3. APENAMENTO. Crime continuado. Exasperação mínima. Reconhecimento. Apenamento readequado. RECURSO MINISTERIAL IMPROVIDO. RECURSO DA DEFESA PARCIALMENTE PROVIDO.’ (fl. 311.)

Em suas razões recursais, a parte recorrente sustenta que o acórdão recorrido violou o artigo 229, do Código Penal, fixando entendimento antagônico à jurisprudência deste Sodalício. Argumenta que ‘a tolerância ou desuso não se apresentam como causa de despenalização’ (fl. 331). Ao final, requer o provimento do recurso para que, reformando o v. acórdão recorrido, seja a recorrida condenada, também, nas sanções do artigo 229 do Código Penal. (…)

O recurso merece prosperar. De plano, ressalta-se que este Sodalício firmou orientação no sentido de que eventual tolerância social ou mesmo das autoridades públicas e policiais não descriminaliza a conduta tipificada no artigo 229, do Código Penal. (…) Dessarte, verifica-se que o entendimento firmado pela e. Corte de origem está em contraste com a jurisprudência do STJ devendo, portanto, ser reformado.

Diante do exposto, nos termos do art. 557, § 1º-A, do Código de Processo Civil, DOU PROVIMENTO ao recurso especial para reconhecer como típica a conduta praticada pela recorrida, cassando o v. acórdão e a r. sentença. Em tempo, determino o retorno dos autos ao r. Juízo de primeiro grau para que profira outra sentença, como entender de direito, respeitando o comando emanado por este Superior Tribunal de Justiça. Por fim, expeçam-se ofícios ao Exmo. Sr. Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, bem como ao Presidente da Quinta Câmara Criminal, com cópia desta decisão, para que tomem conhecimento.

Publique-se. Intimem-se. Cumpra-se.

Brasília (DF), 16 de agosto de 2011.

MINISTRO ADILSON VIEIRA MACABU

(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ)

Relator” (destacamos)

 

N o t a s

 

            A Constituição Federal atribui ao Superior Tribunal de Justiça a grave missão de uniformizar a interpretação da legislação federal, bem como a de zelar por sua aplicação e vigor. Isso significa que cabe ao STJ assegurar a aplicação da lei vigente. No entanto, não é apenas a vigência da lei que determina a necessidade de sua obediência.

            Sabe-se que nosso sistema político preza a noção de representatividade. Isto é, os parlamentares eleitos propõem e aprovam leis no pressuposto de que o fazem em atendimento à vontade daqueles que os elegeram. O problema é quando esse pressuposto não se realiza na prática.

            Objetivamente: a decisão em comento pôs em causa a legitimidade da aplicação da lei. O que torna o assunto um pouco menos simples é o embate que inevitavelmente há, em Direito, entre forma e conteúdo: a lei é válida, mas os valores que a animam estão defasados.     Está errado o STJ quando forma o entendimento de que “eventual tolerância social ou mesmo das autoridades públicas e policiais não descriminaliza a conduta“? Formalmente, não. Inexiste dispositivo na legislação federal que sustente tal modalidade de descriminalização. Ainda assim, a tolerância social tem a sua relevância para a aplicação da lei penal.

            O estudo do fenômeno da repressão criminal denuncia a existência de uma relação muito íntima e duradoura entre a intolerância social e a criminalização das condutas humanas. O fundamento da mais grave forma de intervenção do Estado na esfera da liberdade do cidadão necessita ser, precisamente, a rejeição social que determinadas condutas suscitam no íntimo de cada um. Os crimes mais óbvios, como os delitos contra a vida, contra a integridade física e contra a dignidade sexual são todos reprovados, antes, moralmente do que legalmente. Ou melhor: nem todos.

            O tipo do art. 229 do CP descreve uma conduta cuja aceitação social é, hoje, inegável. O acórdão do TJRS, acima transcrito, demonstra isso de modo eloquente, e lembra que “a intolerância irracional de muitos escusa ou justifica a hipocrisia ou dissimulação de alguns” (Máximas, Pensamentos e Reflexões, 1837, de Mariano José Pereira da Fonseca, o Marquês de Maricá – 1773-1848).

Segundo a decisão da corte gaúcha, citada no acórdão do STJ, acima, “à sociedade civil é reconhecida a prerrogativa de descriminalização do tipo penal configurado pelo legislador“. De fato, a lógica meramente repetidora da lei não permite reconhecer princípios modernos já consolidados, como a adequação social e a intervenção mínima, p.ex. A propósito, Miguel Reale ensina que “o ato de julgar não se reduz a uma atitude passiva diante dos textos legais, mas implica notável margem de poder criador” (Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1985, p.168. Itálicos nossos). Seria a orientação do TJRS frontalmente divergente da emanada do STJ? À primeira vista, sim.

            À segunda vista, pode-se entrever algo a mais. O STJ não ignora a condição da legitimidade das leis (e do próprio Estado) e também não rejeita o fundamento de validade da repressão criminal. Mas ele também é formado por membros da sociedade que podem avaliar, por eles próprios, o tempo das coisas. E esse termômetro cronológico, quer parecer, indica que o momento de descriminalizar o art. 229 do CP aproxima-se cada vez mais. O veredito, portanto, para quem se arrisca a ler o que não está escrito, talvez revele o seguinte diagnóstico: “ainda não“.

 

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