Parece que foi ontem

“Eu sei, eu sei – não é só Paris que sofre hoje; por várias décadas, o restante da Europa também não será mais o que foi. Uma certa treva nunca mais se dissipou no horizonte da Europa, antes tão claro; amargura e desconfiança entre os países, entre as pessoas, permanecem como um veneno que carcome o corpo mutilado. Por mais progresso que tenham produzido nos campos social e tecnológico, não há mais nenhuma nação no nosso pequeno mundo ocidental que não tenha perdido incomensuravelmente muito do seu antigo prazer de viver e da descontração.

recisaríamos passar dias e dias contando como eram confiantes e puerilmente alegres os italianos, mesmo na mais amarga pobreza, como iam às suas ‘trattorias’ e cantavam, fazendo piadas de seu péssimo governo, enquanto agora marcham mal-humorados, com o queixo levantado e o coração aborrecido. É possível imaginar algum austríaco, relaxado e leve em sua benevolência, confiando de maneira tão fiel em sua vida tão aprazível? Russos, alemães, espanhóis, ninguém mais sabe quanta liberdade e alegria o ‘Estado’, este espantalho sem coração e faminto, sugou-lhes do âmago da alma. Todos os povos sentem apenas que uma nuvem estranha pesa sobre suas vidas, larga e carregada. Mas nós, que ainda chegamos a conhecer o mundo na liberdade individual, sabemos e podemos testemunhar como antes a Europa se comprazia, despreocupada, com seu jogo de caleidoscópio colorido. E estremecemos ao ver como nosso mundo ficou à sombra, escurecido, escravizado e aprisionado por causa da sanha suicida. E, no entanto, em nenhum outro lugar era possível sentir a despreocupação ingênua e, ao mesmo tempo, maravilhosamente sábia da existência de maneira tão feliz como em Paris, onde ela era confirmada pela beleza das formas, pela suavidade do clima, riqueza e tradição. Cada um de nós, jovens, absorvia uma parte dessa leveza e acrescentava outro tanto. Não importa que fossem chineses ou escandinavos, espanhóis ou gregos, brasileiros ou canadenses: todos se sentiam em casa à beira do Sena”.

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Parece que foi ontem, mas o texto acima é da autobiografia do escritor austríaco Stefan Zweig (“O mundo de ontem”), ao relembrar sua mudança de Viena para Paris – “Cidade da Eterna juventude” -, deixando para trás os exércitos e os tanques nazistas que avançavam sobre a Europa na Segunda Guerra Mundial “como uma massa cinzenta de cupins”.