“Eles acham que você quer ser Jim Morrisson”, explica Mike Joyce a Morrissey o porquê de a família do baterista rechaçar o cantor. Morrissey articula linha a linha de sua “Autobiography”, lançada no mês passado na Inglaterra e anunciada para abril pela Globo Livros no Brasil, no presente e sem capítulos (ao melhor estilo de Saramago), como se ele ainda vivesse naquele tempo. Mas isso não significa que a afeição que tinha pelos ex-amigos de The Smiths perdure. Por mais que enalteça o talento de Joyce enquanto músico, Moz não coloca véus sobre sua opinião a respeito do caráter do baterista.

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Ele fala como se as pessoas que cita não existissem, por isso, não encolhe os ombros ao relatar que Sandie Shaw, uma de suas heroínas, reclamou de ter atingido a posição 27 nas paradas britânicas com o cover de Hand in Glove. “Se a posição 27 é suficiente para você, para mim não é”, disse a cantora, uma espécie de Wanderléia com Rita Lee. Morrissey se restringe a grunhir como resposta.

Tão revelador quanto a confirmação de seu namoro com o fotógrafo Jake Walters, o fatídico momento em que o “eterno ‘eu’ se transformou em ‘nós'”, foi o plano de Morrissey de deixar There is a light that never goes out de fora do “The Queen is dead” – chegando a falar com Johnny Marr a respeito – que apenas riu na cara do (então) amigo. Sua verve ao contar o quanto Geoff Travis, dono na gravadora Rough Trade, que lançou a banda, odiava o The Smiths faz o discurso parecer um desabafo psicanalítico. O maior ranço vem do fato de a Rough Trade nunca ter produzido os singles – e mesmo os álbuns – com um estoque suficiente para que chegassem ao primeiro lugar.

Morrissey é uma alma genuinamente atormentada, ao melhor estilo dostoieviskiano. Um homem que se depara com um fantasma, como ele próprio conta, e mantém uma calma sobre-humana não pode ser real. Mas é. Tão real que a placidez de sua memória não o faz esquecer dois brasileiros: Jean Charles de Menezes, perseguido e morto pela polícia britânica, e a fã cega que sobe ao palco de São Paulo, em 2000, e que, apesar não poder vê-lo, literalmente, o ama.

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Morrissey, o desbocado, ataca novamente, não poupa nada e nem ninguém, nem mesmo a notícia aterradora – para muitos fãs – de que chegou a pensar em ter um filho com a amiga (apenas amiga??) Tina Dehghani. Como acreditar que alguém que empunhou a frase “and is there any point ever having children?” como uma espada pode pensar em ter filhos? Entre tantas contradições, Morrissey ainda se revela brilhante e relevante em sua “Autobiography” – uma mistura perfeita entre a confusão da verdade e da ficção.