Vivo ou Morto: um crime, uma igreja e muitas mentiras no novo jogo de Rian Johnson

NOTA: ★★★★1/2

A terceira entrada da franquia Knives Out pode até não carregar mais o impacto de novidade de Entre Facas e Segredos, mas isso está longe de ser um problema. Rian Johnson parece plenamente consciente do terreno que pisa e, em vez de tentar repetir o efeito surpresa, prefere refinar sua linguagem. O filme abandona o deslumbramento imediato para apostar em algo mais sólido: um jogo de observação, crença e manipulação que exige do espectador atenção e entrega.

Esse movimento conversa diretamente com a carreira do diretor. Desde sua travessia por Breaking Bad, passando por Looper e chegando à experiência turbulenta em Star Wars: Os Últimos Jedi, Johnson sempre demonstrou fascínio tanto por estruturas narrativas clássicas como pela quebra de expectativas. Aqui, ao contrário da modernidade excessiva do capítulo anterior da franquia, Glass Onion (que eu também admiro) há um retorno evidente às origens do mistério, com igrejas, cemitérios e construções de atmosfera quase vitoriana – ainda que no interior do estado de Nova Iorque -, em contraste direto com o presente.

Daniel Craig retorna ao papel de Benoit Blanc em mais uma variação que reforça a ideia de que o personagem nunca é exatamente o mesmo. Se antes soava mais seguro de suas certezas, aqui Blanc se mostra mais acessível, menos confiante, quase tateando o terreno moral ao seu redor. É como se o detetive se moldasse ao espaço e ao tema da investigação. Craig, cada vez mais distante da rigidez de James Bond, parece se divertir com essa elasticidade do personagem.

Não por acaso, Blanc demora quase quarenta minutos para entrar em cena. Antes disso, o filme cede um espaço generoso ao padre Jud Duplenticy, vivido com grande sensibilidade por Josh O’Connor. Essa escolha permite que o espectador se conecte com suas dúvidas, seus silêncios e suas contradições. Quando Blanc finalmente surge, o mistério já está contaminado por conflitos emocionais e espirituais, e não apenas por pistas espalhadas.

O ponto de partida da trama é a morte do irascível Monsenhor Jefferson Wicks, interpretado por Josh Brolin, figura central de uma pequena comunidade governada pelo medo e pela devoção cega. O embate entre Wicks e Jud é fundamental para compreender o filme. Enquanto o jovem padre tenta trabalhar valores genuínos de fé e acolhimento, o monsenhor exerce seu poder por meio da opressão, revelando traços claros de ganância e desejo de controle. A fé, aqui, deixa de ser abrigo e passa a ser instrumento político, algo que o filme delineia com habilidade.

Ao redor desse conflito, Rian Johnson constrói um conjunto de personagens marcados por fissuras profundas. Glenn Close, Kerry Washington, Andrew Scott, Jeremy Renner, Thomas Haden Church e Cailee Spaeny formam esse pequeno rebanho, todos afetados pela presença sufocante do Monsenhor. Por trás de um conservadorismo local cuidadosamente encenado, o filme expõe problemas de paternidade mal resolvidos e relações familiares adoecidas, revelando uma moralidade sustentada muito mais pela aparência do que pela virtude.

Mais do que discutir poder ou culto à personalidade, Vivo ou Morto se dedica a refletir sobre a essência da fé. Essa discussão ganha força no contraste entre Benoit Blanc e o padre Jud. Enquanto o detetive deposita sua fé no racional, na lógica e na observação da realidade, Jud tenta se reconectar com uma crença no invisível, em uma força superior à qual sente que precisa retornar. São duas formas de acreditar colocadas frente a frente, ambas repletas de fragilidade, ambas suscetíveis ao erro.

Com um texto afiadíssimo e repleto de piscadelas, o filme dialoga com o próprio cinema e suas mitologias. Há ecos de Star Wars, O Senhor dos Anéis e até do espírito lúdico de Scooby-Doo, especialmente na maneira como o absurdo da trama é abraçado sem constrangimento. Johnson sabe exatamente para onde mover a atenção do espectador, conduzindo nosso olhar com precisão, ora iluminando, ora ocultando informações.

Esse jogo é atravessado por um senso de humor impagável. A relação entre Blanc e o padre Jud rende alguns dos momentos mais divertidos do filme, equilibrando ironia e afeto. Mesmo ao lidar com temas espinhosos como o poder político da igreja e suas contradições internas, o filme mantém uma leveza contagiante, fiel ao espírito lúdico da franquia.

Visualmente, Vivo ou Morto reforça suas ideias por meio de uma fotografia que dialoga constantemente com símbolos do imaginário cristão, banhando ou retirando luz dos personagens conforme seus conflitos vêm à tona. A resolução do mistério é mirabolante, como pede o gênero, mas faz todo sentido dentro da proposta de Johnson, sempre mais interessado na forma e no porquê do crime do que simplesmente em sua autoria. O desfecho, marcado por um belo monólogo e uma ironia fina no plano final, reafirma que a maior obsessão do filme nunca foi o assassinato, mas aquilo em que escolhemos acreditar.


Vivo ou Morto – Um Mistério Knives Out
Direção: Rian Johnson
Ano: 2025
Elenco: Daniel Craig, Josh O’Connor, Josh Brolin, Glenn Close, Kerry Washington, Andrew Scott, Jeremy Renner, Thomas Haden Church, Cailee Spaeny
Duração: 140 minutos
Disponível na Netflix


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