NOTA: ★★★★1/2
Paul Thomas Anderson, ao longo da sua carreira, sempre demonstrou uma capacidade rara de observar o humano com precisão incômoda. Em Magnólia, Sangue negro e Trama fantasma, entre outros, ele investigou obsessões íntimas e vícios silenciosos. Em Uma Batalha Após a Outra, no entanto, ele escolhe virar o olhar para um mundo que já não admite sutilezas. É um Anderson que abraça o caos político, os excessos imagéticos e a ironia amarga de um país em combustão. Não por acaso, o filme se aproxima muito da ironia dos irmãos Coen e do humor explosivo de Tarantino, com um toque de desespero e urgência muito particulares.
O ponto de partida é simples, mas poderoso: um grupo revolucionário tenta sobreviver às práticas nocivas de um governo totalitário. Esse universo, que deveria soar distópico, infelizmente se revela desconfortavelmente familiar. A ascensão de um regime que normaliza arbitrariedades, silencia dissidências e transforma violência em método não é retratada como fantasia futurista, e sim como consequência lógica de tudo que já vemos se organizar no presente. Anderson parece mais interessado em mostrar o que acontece quando o absurdo deixa de ser exagero e passa a ser forma de governo.
É nesse ambiente que conhecemos Bob Ferguson, interpretado por Leonardo DiCaprio, e Perfídia Beverly Hills (que nome maravilhoso!), vivida com energia incendiária por Teyana Taylor. Perfídia é movida por um tesão revolucionário quase performático, e o filme se diverte com isso até o momento em que ela cruza o caminho do coronel Lockjaw. Sean Penn entrega aqui uma das interpretações mais perturbadoras da sua carreira, encarnando aquele típico militar conservador, homem de bem e família, que se apresenta como defensor da moralidade enquanto esconde predileções que seus iguais considerariam imperdoáveis. A relação entre ele e Perfídia não tem glamour, apenas abuso, controle e um desejo doentio de posse.
A captura de Perfídia interrompe esse prólogo, e Anderson joga a narrativa dezesseis anos adiante. Bob agora vive com a filha Willa, interpretada pela excelente Chase Infiniti, cujo arco é o clássico rito de passagem no qual ela aprende, da forma mais violenta possível, que o passado nunca fica tão enterrado quanto gostaríamos. Quando o coronel Lockjaw é convidado a integrar uma sociedade supremacista secreta, ele precisa apagar rastros antigos e volta a caçar Bob e sua filha. É nesse ponto que o título Uma batalha Após a Outra se revela mais documental que metafórico.
DiCaprio encarna aqui um dos personagens mais tragicômicos da carreira: um homem que praticamente fritou o cérebro com drogas e álcool, mas que ainda precisa reunir algum resquício de dignidade para proteger a filha. A imagem dele de roupão e óculos escuros, vagando pelo caos, é uma das gags mais inspiradas do diretor. Ao redor deles, Anderson povoa a narrativa com figuras excêntricas, como o sensei vivido por Benicio Del Toro, talvez a presença mais lúcida desse universo tresloucado.
Um dos elementos mais fascinantes do filme é como Anderson abraça o cinema exploitation sem cerimônia. As freiras empunhando metralhadoras, a fixação por armas, as situações que beiram o grotesco compõem uma estética que, longe de ser paródica, funciona como comentário direto sobre o fetiche bélico e a moralidade contraditória dos que defendem pureza étnica e violência na mesma frase.
A discussão sobre supremacia branca e totalitarismo é tratada pelo diretor com uma ironia agridoce. Anderson entende que o espectador ri não porque acha graça, mas porque reconhece a proximidade entre o absurdo ficcional e o noticiário real. A sociedade supremacista secreta, as justificativas moralistas, a paranoia travestida de patriotismo, tudo soa exagerado, mas apenas até lembrarmos que nenhum exagero parece impossível nos tempos que vivemos. O filme ironiza e denuncia ao mesmo tempo, como se apontasse para o futuro enquanto nos avisa que ele já chegou.
Esse comentário político se torna ainda mais contundente porque Anderson nunca perde o senso de humanidade que sempre marcou sua obra. No fundo, Uma Batalha Após a Outra funciona como um grito silencioso contra políticas xenofóbicas, preconceitos institucionalizados e essa ideia perigosa de que violência é solução. O filme questiona o autoritarismo, a misoginia e pânico moralista sem panfletarismo, mas com uma clareza que incomoda. É uma obra que confronta o espectador com o retrato distorcido de um país que talvez nem perceba mais que esta é sua realidade.
A perseguição automobilística que serve de clímax é o encontro perfeito entre espetáculo e desconforto. Anderson demonstra domínio técnico absoluto, mas o que fica não é apenas a exuberância visual, e sim a constatação amarga de que essa corrida desesperada não pertence apenas aos personagens. É um reflexo das nossas próprias tentativas de escapar de forças que parecem sempre nos alcançar.
No fim, Uma Batalha Após a Outra é um filme não apenas corajoso, mas cada vez mais atual, porque existe no ponto exato em que fantasia e realidade se tocam. Anderson transforma exagero em diagnóstico, humor em alerta e violência em radiografia moral. Assistimos, rimos por nervoso e saímos com a sensação de que o absurdo já não é exagero, apenas descrição do mundo.
🎬 UMA BATALHA APÓS A OUTRA
Direção: Paul Thomas Anderson
Ano de produção: 2025
Elenco: Leonardo DiCaprio, Teyana Taylor, Sean Penn, Chase Infiniti, Benicio Del Toro
Duração: 2h40
