NOTA: ★★★★★
Há 45 anos, O Iluminado estreava e mudava definitivamente a maneira como o cinema se relacionava com o terror. Não estamos falando do terror da surpresa fácil, mas o que nasce do vazio, da inquietação interna, da presença que cresce quando há silêncio demais. Rever esse filme nos cinemas quatro décadas e meia depois não é apenas revisitar um clássico, e sim reencontrar um tipo de medo que nunca abandonou o imaginário coletivo: o medo de nós mesmos.
Stanley Kubrick já era um perfeccionista visual quando se aventurou por Stephen King. A carreira do diretor vinha de metamorfoses radicais: do rigor estético de Barry Lindon ao futuro enigmático de 2001, passando pela violência estilizada de Laranja Mecânica. Seu cinema sempre foi um estudo sobre obsessões humanas, e O Iluminado não foge disso. Ele não adapta King: ele o reinterpreta e, como sempre, adapta o mundo a si. King, por sua vez, já se consolidava como o cronista das angústias americanas, um autor capaz de transformar traumas, vícios, culpas e famílias fraturadas em mitologias contemporâneas. O encontro entre os dois é tenso, quase antagônico, mas é desse atrito que nasce a força do filme.

Logo nos primeiros minutos, Kubrick estabelece a grande temática da obra: o Hotel Overlook não é apenas cenário, é a projeção física do inconsciente de Jack Torrance. Seus corredores não seguem nenhuma lógica, suas portas não conduzem ao que prometem, seus salões vazios ecoam como memórias mal resolvidas. O isolamento só acelera aquilo que já está lá, latente e prestes a romper. O terror não entra pela porta, ele desabrocha de dentro, como se Jack estivesse condenado desde o primeiro olhar torto para a sua família.
Stephen King sempre viu seu romance como a tragédia de um homem tentando se recuperar e que acaba enfrentando não apenas os seus fantasmas internos, mas verdadeiros espíritos malignos. Kubrick faz o inverso: ele enxerga um sujeito já quebrado, um homem incapaz de empatia, um pai que confunde a família com um peso. Essa divergência molda todo o subtexto psicológico. No livro, o hotel corrompe. No filme, o hotel apenas revela. Jack é o fantasma precoce de si mesmo. O isolamento é o espelho que devolve exatamente o que ele queria evitar ver.

A fotografia e a mise-en-scène reforçam isso com precisão quase clínica. O labirinto externo dialoga com o labirinto interno. A steadicam desliza por trás de Danny não apenas para criar tensão, mas para sugerir uma vigilância constante, quase paranoica, como se a consciência do hotel estivesse sempre à espreita. O espaço observa mais do que ameaça, e essa observação silenciosa é talvez sua arma mais eficiente. A psicologia do filme se constrói na sensação de aprisionamento, de repetição, de circularidade. Nada avança porque o sujeito não avança. Ele gira em torno do próprio vazio.
Jack Nicholson materializa essa espiral com um desempenho que beira o grotesco, mas sempre com propósito. Seus olhos nunca repousam, seu sorriso sempre parece carregar algo que ele não está disposto a revelar. Jack não enlouquece ao longo da trama: ele apenas larga o disfarce. O que era contenção transforma-se em expansão, como se o hotel lhe fornecesse não novas ideias, mas permissão.
No centro disso está Wendy, interpretada por Shelley Duvall com uma fragilidade que machuca. A atriz, exaurida fisicamente e emocionalmente por Kubrick, transforma essa exaustão em verdade cênica. Seu olhar cansado, sua energia sempre à beira da ruptura e sua voz trêmula não são apenas resultado de direção extrema, mas elementos essenciais para que o filme funcione como instrumento de desolação. Wendy é o ponto humano em um cenário de desumanização progressiva.

Ao fim, quando o filme abraça o sobrenatural, já estamos emocionalmente anestesiados pelo terror da convivência. A aparição dos fantasmas importa menos do que o que eles simbolizam: a inevitabilidade da repetição histórica, do ciclo da violência, da permanência do mal como herança. A morte de Dick Halloran (eternizado por Scatman Crothers e cujo personagem retorna agora na série Bem-Vindos a Derry, baseado na obra IT), rápida, inesperada e brutal, apenas ressalta o cinismo do destino no qual o filme acredita. O desfecho congelado prende Jack na imagem que sempre o perseguiu: a de alguém que nunca pertenceu ao presente, alguém destinado a repetir o papel de guardião do próprio abismo.
A solidão, aqui, é o verdadeiro vilão. O isolamento físico expõe o isolamento emocional, e a falta de contato humano transforma a mente em território hostil. É por isso que, em O Iluminado, as paredes respiram, as portas lembram rios de sangue e os corredores desejam. O hotel é a anatomia de uma mente que colapsa quando descobre que está só demais consigo mesma.
Décadas depois, Doutor Sono recuperaria elementos da obra original de King, explorando Danny como sobrevivente de traumas que nunca cessaram. O filme funciona como eco tardio: o hotel pode ruir, mas o que ele deixa permanece vivo. Ser iluminado, afinal, é tanto um dom quanto um fardo.

Assim, revisitar O Iluminado após 45 anos é perceber que o horror verdadeiro não está no sobrenatural, e sim no que se revela quando o mundo se afasta e nos deixa sós. Kubrick, com sua precisão quase cirúrgica, constrói um estudo sobre a mente que falha, sobre o indivíduo que se fragmenta e sobre a família como último e frágil bastião contra o vazio. O terror que assusta não é o fantasma, é o espelho.
SERVIÇO
O ILUMINADO
Direção: Stanley Kubrick
Ano de Produção: 1980
Elenco: Jack Nicholson, Shelley Duvall, Danny Lloyd, Scatman Crothers
Duração: 146 minutos
Em exibição especial a partir do dia 11 de dezembro nos cinemas
E você? Aproveite a oportunidade para ver essa obra-prima no cinema. Depois, conta pra gente o que achou!
