NOTA: ★★★★★
Há uma sintonia quase poética entre O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, e Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. Ambos olham para o Brasil dos anos 1970 com o mesmo sentimento de resgate – como se quisessem reabrir o passado, folhear suas páginas amareladas e perguntar: o que fizemos com a nossa história e com aqueles que a viveram? Mendonça constrói, nesse filme, um mosaico sobre memória e identidade, mas também sobre as feridas abertas que continuam a sangrar, ainda que disfarçadas sob o brilho das serpentinas de um carnaval que parece ser eterno, um período, como o próprio filme diz, de pirraça.
A sequência inicial é uma síntese magistral do país e do cinema que Kleber quer nos apresentar. Wagner Moura, num de seus papéis mais sutis e precisos, para em um posto de gasolina caindo aos pedaços em meio a estrada, no qual há o corpo de um homem coberto por papelão, já apodrecendo, cercado de moscas. O funcionário diz que era um assaltante que foi morto durante o carnaval. Minutos depois, chegam policiais – não para cuidar do corpo, mas para tentar arrancar algum dinheiro do protagonista, uma ajuda para a “caixinha do carnaval”. A cena é grotesca, cômica e tristemente familiar. Um retrato do Brasil em decomposição, em que a corrupção e a violência se tornaram parte do cotidiano. É o país em miniatura, revelado no descaso, na barganha e na naturalização da morte.
Marcelo, o personagem vivido por Moura, é um homem fugindo de seu passado e de um industrial poderoso e corrupto que mandou dois assassinos para matá-lo. Ele chega ao Recife de 1977 para reencontrar o filho enquanto aguarda ajuda para escapar, sair do país. O refúgio que encontra é um abrigo de almas feridas. O prédio em que se hospeda abriga outros como ele: pessoas que vivem sob identidades falsas, como forma de escapar de um trauma que insiste em persegui-las. Há uma metáfora curiosa e poderosa nesse apartamento: um gato com dois rostos, descoberto por Marcelo, simboliza essa duplicidade dos personagens, mas também das próprias instituições e do país – sempre dividido entre o que mostra e o que esconde.
Kleber Mendonça Filho, assim como em O Som ao Redor e Aquarius, transforma o espaço em personagem. O condomínio em que Dona Sebastiana (a maravilhosa senhorinha Tânia Maria, em atuação sublime) é o ponto de referência é ao mesmo tempo um refúgio e uma prisão, um território em que passado e presente se misturam. O diretor costura ainda pequenas histórias paralelas – o soldado judeu confundido com nazista, o delegado medíocre que posa de autoridade, os assassinos que terceirizam o próprio serviço – e com elas desenha um país de identidades trocadas, em que todos fingem ser algo para sobreviver. A desigualdade, por sua vez, aparece em todos os gestos: enquanto a elite tem acesso à impunidade e ao conforto, a população comum é descartável, invisível, quase uma nota de rodapé na história.
A paixão de Mendonça pelo cinema aparece em cada plano. Há referências ao Cinema São Luiz, que ele resgatou em Retratos Fantasmas, aos cartazes dos filmes da época e até ao Tubarão, de Spielberg – que aqui surge como piada e como alegoria. Um tubarão literal, dentro do qual se encontra uma perna humana, talvez vítima da polícia, simboliza de forma cruel e irônica como a corrupção está entranhada na sociedade. É o absurdo que devora o país por dentro. A Perna Peluda, que ganha vida própria mais adiante em uma sequência digna do Cine Trash, é tanto um aceno ao horror quanto uma metáfora sobre os monstros que o poder cria e alimenta. Essa mistura entre o riso e o medo, o real e o fantástico, é o que dá ao filme sua textura única, entre o thriller político e o delírio carnavalesco.
A reconstituição de época é impressionante. A fotografia de Evgenia Alexandrova e a direção de arte de Thales Junqueira criam a ilusão de um filme realmente rodado nos anos 1970, com tons amarelados e textura granulada que parece saída de um velho rolo de película. Ainda assim, o que mais chama atenção é a atualidade de tudo. A corrupção, o poder militar, a desigualdade – nada soa distante. O passado filmado por Kleber é também o espelho do presente, um lembrete de que o país muda de figurino, mas não de roteiro. E talvez seja esse o gesto mais político do filme: transformar a nostalgia em denúncia.
O Agente Secreto trabalha com diferentes linhas de tempo, costurando passado e presente como quem tenta decifrar um mesmo enigma a partir de ângulos distintos. Kleber alterna os períodos não apenas para reconstituir uma história, mas para revelar como ela reverbera no agora – como se fosse preciso se afastar da cena e observá-la de outro prisma para compreender toda a sua amplitude. Essa transição entre décadas confere ao filme uma força quase documental, ampliando sua conexão com a realidade dos desaparecidos políticos e com as feridas abertas de um período tão nefasto da história brasileira. É como se as imagens, ao se movimentarem no tempo, finalmente encontrassem as vozes que foram silenciadas.
No centro de tudo, há também uma delicada história sobre paternidade e herança. A relação entre Marcelo e seu filho é retratada com uma sensibilidade rara, sem sentimentalismo. Há ternura, mas também culpa. E é justamente essa culpa que o filme projeta nas outras relações: o assassino e seu enteado, o delegado e seus dois filhos. São laços corrompidos pela violência e pelo silêncio, retratos de um país em que os pecados dos pais recaem inevitavelmente sobre os filhos. A geração seguinte nasce tentando resolver o que a anterior destruiu – ou apenas replicar o que de pior há nesta relação.
O carnaval, onipresente e vibrante, é quase uma entidade no filme. Suas cores, seus sons e sua loucura são a moldura de uma história sobre dor e sobrevivência. Kleber celebra o Recife, mas também o Brasil das pessoas comuns, das relações, dos gestos pequenos. Ele tem o olhar de quem entende que memória não é só lembrança: é resistência. Por isso o filme se permite ceder seu tempo a pequenas histórias, momentos aparentemente frívolos, mas cheios de humanidade. São essas vidas miúdas que formam o verdadeiro legado de um povo.
No fim, O Agente Secreto quebra a expectativa de um thriller político clássico e se transforma em algo mais íntimo e pessoal. O ritmo desacelera, o mistério se dilui, e o que resta é a pergunta essencial: o que forma uma identidade? O documento que se perdeu, as gravações que restaram, as lembranças que sobrevivem dentro da gente? Kleber Mendonça Filho constrói aqui seu filme mais belo e ambicioso – um labirinto de lembranças, um ensaio sobre o Brasil e sobre o ato de lembrar. Quando a luz da tela se apaga, resta a sensação de que o verdadeiro segredo do agente é justamente esse: lembrar é resistir.
E se há algo que se pode dizer sobre Kleber Mendonça Filho é que ele próprio é um agente da memória. Desde O Som ao Redor (2012), passando por Aquarius (2016), Bacurau (2019) e o documentário Retratos Fantasmas (2023), o diretor tem filmado o país como quem monta um arquivo afetivo do que somos e do que esquecemos. O Agente Secreto é o ponto culminante dessa trajetória – uma obra de maturidade artística e política, feita com rigor, emoção e ironia, que reafirma Kleber como um dos grandes cineastas do cinema mundial contemporâneo.
🎬 O AGENTE SECRETO
Direção: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Wagner Moura, Tânia Maria, Alice Carvalho, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Udo Kier, Tomás Aquino, Hermila Guedes
Gênero: Drama / Thriller político
Duração: 2h40
Lançamento: 2025
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