Frankenstein, de Guillermo Del Toro: os laços que criam monstros

NOTA: ★★★★1/2

Guillermo Del Toro sempre foi um diretor obcecado por monstros – mas seu fascínio nunca esteve nas garras ou nas cicatrizes. O que o encanta é o que essas criaturas revelam sobre a humanidade. E talvez por isso sua nova adaptação de Frankenstein, em cartaz na Netflix, venha acompanhada de uma pergunta inevitável: ainda há algo novo que pode ser dito sobre esse personagem, um dos mais revisitados da história do cinema? A resposta de Del Toro é um sonoro sim – e ela vem carregada de emoção, dor e beleza.

Desde os primeiros minutos, é possível perceber que este não é somente o Frankenstein de Mary Shelley, mas o Frankenstein de Del Toro – e isso muda tudo. O diretor não busca repetir a fábula gótica do século XIX, mas reinventá-la a partir de suas obsessões mais íntimas: a solidão, a perda, o amor não correspondidos e a eterna tentativa de enxergar beleza naquilo que o mundo chama de monstruoso. Cada fotograma carrega uma devoção estética e emocional que transforma o terror em algo quase poético.

Victor Frankenstein, vivido por Oscar Isaac, é apresentado como um jovem que nunca superou a morte da mãe e cresceu sob o peso da frieza paterna. O pai, interpretado com imponência ameaçadora por Charles Dance, é um homem incapaz de demonstrar afeto, interessado apenas em moldar o filho, por meio do abuso psicológico, para a medicina e a perfeição. É dessa relação despedaçada que nasce o cientista obcecado em desafiar a morte – um homem que, em sua tentativa de domar a natureza, repete o mesmo ciclo de abandono que o destruiu.

Quando o milionário Harlander (Christoph Waltz) – cuja fortuna tem como origem o comércio de armas para guerras – surge como patrocinador de seus experimentos, Victor enxerga uma oportunidade de provar ao mundo – e ao pai ausente – que é capaz de criar vida. A criatura (Jacob Elordi), formada por fragmentos de cadáveres, é o resultado dessa vaidade travestida de ambição científica. Porém, em vez do homem perfeito que esperava, Frankenstein cria algo grotesco, trêmulo, vulnerável. E, ao rejeitar sua própria criação, reproduz com precisão a frieza que sempre recebeu. O monstro é, antes de tudo, o reflexo do criador.

Del Toro divide o filme em duas partes. A primeira é narrada a partir da perspectiva de Victor, centrando-se em seu ego, sua raiva e sua relação conturbada com o irmão William e com Elizabeth (Mia Goth), noiva do irmão. Elizabeth, aqui, é uma personagem surpreendente: questionadora, empática, uma mulher que duvida das verdades masculinas e enxerga humanidade onde ninguém mais vê. Ela representa o olhar que falta a quase todos ao redor – o olhar que reconhece a dor da criatura como algo legítimo. Não por acaso, sua empatia é também sua condenação, já que sua aproximação com a criatura é vista de forma condenável por Frankenstein e seu ego imenso.

A segunda metade é narrada pela própria criatura – e é nesse momento que o filme se eleva. Jacob Elordi, em uma atuação delicada e brutal, encarna um ser que busca desesperadamente entender o sentido de existir. Ele é feito de pedaços, e sua consciência começa apenas no instante de sua criação. Sem memória, sem história, sem amor, ele tenta encontrar humanidade nas pessoas – e o que recebe é repulsa. O horror, aqui, não está nas cicatrizes, mas na solidão absoluta de quem não conhece nada além da rejeição.

E é nesse ponto que o filme revela uma das leituras mais sensíveis do mito: a criatura de Del Toro parece se desenvolver apenas quando é tratada com respeito e empatia. Há algo de profundamente comovente no modo como ela reage ao afeto – seus gestos se tornam mais suaves, sua curiosidade mais humana. Frankenstein, por outro lado, jamais consegue ensiná-la ou guiá-la, porque seu método é a coerção, o medo e a antipatia. Em sua ânsia de controlar o que criou, ele perde o essencial: a capacidade de se conectar. E, como ironia cruel, a única palavra que a criatura aprende é “Victor” – o nome de seu criador. Um grito que mistura ódio, dor e identificação; a lembrança viva de que, para aquele ser, sua única referência de mundo é também a origem de todo seu sofrimento.

Essa escolha narrativa é uma das mais potentes do filme, pois transforma o grito do monstro em algo quase simbólico: não é apenas vingança, é uma tentativa desesperada de ser reconhecido. Del Toro dá à criatura uma dimensão quase infantil, como se ela clamasse por um olhar, um gesto, um sinal de amor que nunca veio. O monstro não quer destruir o pai – quer, antes, que o pai o veja.

O grande mérito do filme é justamente transformar o mito do homem que desafia Deus em uma parábola sobre pais e filhos. Victor Frankenstein não cria apenas um corpo, mas repete uma herança emocional que atravessa gerações: o medo de amar, o orgulho de dominar, o castigo de se reconhecer no outro. A criatura, por sua vez, não é um vilão – é o filho que implora para ser visto, amado, reconhecido. E quanto mais tenta provar seu valor, mais é tratado como aberração.

Visualmente, Frankenstein é deslumbrante. Del Toro recria a atmosfera gótica de castelos sombrios, laboratórios iluminados por relâmpagos e vilas cobertas de névoa com um esmero artesanal. A torre onde Victor conduz seus experimentos parece um monumento à loucura e à vaidade. A trilha sonora de Alexandre Desplat, oscilando entre o lirismo e o terror clássico, costura a narrativa com uma elegância que torna cada sequência um espetáculo sensorial. Há ecos de A Colina Escarlate e até de O Labirinto do Fauno, mas aqui – mesmo com sequências deliciosamente grandiloquentes – tudo parece eventualmente mais contido, mais íntimo – como se o diretor falasse diretamente de dentro do coração da criatura

Nem tudo, porém, funciona de forma orgânica. A relação entre Victor e seu mecenas Harlander soa por vezes subdesenvolvida – uma tentativa de criar um novo vínculo paterno que nunca se concretiza plenamente. Da mesma forma, Elizabeth poderia ter ganhado mais espaço, já que sua evidente humanidade contrasta com a frieza do cientista e a dor da criatura. Ainda assim, esses deslizes não comprometem o conjunto. Pelo contrário, reforçam a sensação de que o filme é sobre imperfeições – as do corpo, as da alma, as da própria criação.

E há algo curioso e profundamente simbólico: como o filme não segue fielmente a história de Mary Shelley, Del Toro vai costurando pedaços – do livro, das adaptações anteriores que vêm desde o início do século passado, das suas próprias memórias cinematográficas – e transforma tudo em uma obra única. Assim como a criatura, o Frankenstein de Del Toro também é feito de remendos, de fragmentos de outras criações. A diferença é que, se o monstro nasce imperfeito e condenado, o filme nasce também imperfeito, mas fascinante – uma colagem de referências que ganha vida própria, pulsando com identidade e emoção.

No fim, Frankenstein é mais do que uma história sobre um homem que brinca de Deus. É um filme sobre a necessidade humana de ser amado, sobre o peso da rejeição e sobre o eterno conflito entre criador e criatura. Del Toro, com seu olhar sensível e sua estética inconfundível, transforma uma tragédia clássica em um conto de compaixão. O horror aqui é de carne e espírito, e o que resta é uma ponta de esperança – a ideia de que talvez a vida, mesmo feita de pedaços, ainda valha a pena ser vivida.

Este é um Frankenstein que realmente pulsa. E que demonstra, no fim das contas, que o que todos nós buscamos – no amor, na arte, na ciência – é apenas uma forma de provar que merecemos existir com dignidade.


🎬 FRANKENSTEIN
Direção: Guillermo Del Toro
Elenco: Oscar Isaac, Jacob Elordi, Mia Goth, Christoph Waltz, Charles Dance
Gênero: Terror / Drama / Fantasia Gótica
Duração: 2h29
Origem: Estados Unidos / México
Lançamento: 2025 (Netflix)



E aí, o que achou do filme? Qual a versão da criatura de Frankenstein que você mais gosta no cinema? Conte pra gente nos comentários.

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