Emilia Pérez: indicado a 13 Oscars, filme acumula mais polêmicas do que qualidades

NOTA: 3/5

Um dos concorrentes de Ainda Estou Aqui pela estatueta dourada, Emilia Pérez é uma obra que se revela tão intrigante quanto inconsistente. Dirigido por Jacques Audiard, o filme gira em torno de Manitas Del Monte, um chefão do narcotráfico mexicano que, após uma transição de gênero, se torna Emilia Pérez e tenta apagar seu passado violento. A premissa, que prometia uma reflexão potente sobre reinvenção e redenção, perde força em meio a clichês e escolhas narrativas questionáveis — especialmente quando confrontada com as polêmicas que emergiram após sua estreia.

O formato de musical, inesperado para muitos, é usado de forma irregular. Há momentos em que as sequências coreografadas avançam a trama de maneira inventiva, como na cena em que a transformação de Manitas (Karla Sofía Gascón) em Emilia é traduzida em um balé de sombras e luzes, simbolizando a morte do passado. No entanto, Audiard parece hesitar entre a ousadia e a convenção: diálogos recitados de forma compassada, quase teatral, quebram o ritmo e geram estranheza.

A discussão sobre ressignificação de identidade e as marcas do passado oferece uma base poderosa, mas o filme se perde ao reduzir sua protagonista a um arquétipo de “criminoso arrependido”. A busca por redenção, que deveria ser complexa, torna-se um exercício de compensação histórica simplista: Emilia usa dinheiro do narcotráfico para financiar um projeto de busca por desaparecidos, como se a violência estrutural do México — tema delicado e urgente — pudesse ser resolvida com gestos messiânicos. O desfecho, por sua vez, desconexo e abrupto, parece abandonar os temas que vinha construindo, optando por um final em aberto que soa mais como falta de coragem do que como provocação.

As atrizes, felizmente, salvam o projeto de ser um mero exercício de estilo. Zoë Saldaña brilha como a advogada Rita, misturando ambição e vulnerabilidade em uma performance cheia de camadas. Selena Gomez, como a viúva do traficante, curiosamente surpreende ao entregar uma atuação contida e melancólica, longe de seu registro usual. Mas é Karla Sofía Gascón quem rouba a cena: sua Emilia Pérez é ao mesmo tempo cativante e perturbadora, uma figura que busca desesperadamente uma identidade nova, mesmo sabendo que o passado a condena. É uma pena que, fora das telas, a atriz não esteja tendo o mesmo tipo de redenção, manchando seu trabalho com recém-descobertos tweets racistas e islamofóbicos, revelando uma contradição entre o discurso progressista do filme e a realidade de seus participantes. O fato da atriz tentar imputar estas descobertas à equipe de Ainda Estou Aqui piora ainda mais a situação. Na prática, ao invés de assumir o erro, Karla tenta se vestir de vítima, o que soa como uma hipocrisia insustentável.

As polêmicas que cercam Emilia Pérez lançam uma sombra sobre seus méritos técnicos. A escolha de rodar majoritariamente em estúdios franceses, com um elenco quase sem mexicanos (à exceção de Adriana Paz), e os erros culturais grotescos revelam uma visão tristemente turística e evidentemente colonialista do país. A decisão de transformar a crise de desaparecimentos forçados, um trauma real com mais de 121 mil vítimas, em pano de fundo para um musical foi recebida como uma afronta por familiares e ativistas. Audiard, que admitiu não pesquisar a fundo a realidade mexicana (“já sabia o suficiente”), parece mais interessado em usar o sofrimento alheio como cenário estilizado do que em ouvir as vozes daqueles que retrata.

A ironia é que Emilia Pérez foi vendido pela Netflix como um marco progressista — o primeiro filme com uma protagonista trans indicado ao Oscar —, mas sua produção reproduz as mesmas opressões que critica. O resultado é uma obra que celebra a reinvenção pessoal na tela, mas é construída sobre a apropriação de dores reais e a reprodução de estereótipos.

Ainda assim, há uma certa ousadia narrativa em Emilia Pérez que merece reconhecimento. A coragem de misturar gêneros tão díspares (musical, thriller, drama) e de abordar temas espinhosos como transgeneridade e culpa coletiva é rara no cinema mainstream. A fotografia, com seus contrastes entre luz e escuridão, e a direção de arte, que transforma o sangrento universo do narcotráfico em uma estética quase expressionista, são feitos técnicos impressionantes. Mesmo as falhas do roteiro são, de certa forma, sintomas de uma ambição que prefere arriscar a ser medíocre.

O problema é que, ao ignorar as nuances culturais e éticas, o filme acaba sabotando sua própria mensagem. A redenção de Emilia, por exemplo, poderia ser poderosa se não fosse tratada como um deus ex machina — afinal, quantas pessoas trans, especialmente em contextos de violência, têm a chance de reescrever suas histórias com recursos ilimitados? A obra levanta questões importantes, mas as respostas que oferece são simplórias, quase escapistas.

No fim, Emilia Pérez funciona como um espelho das contradições da indústria: celebra a diversidade na tela, mas ignora-a nos bastidores; quer ser politizado, mas age com superficialidade. Não é uma obra-prima, mas é um retrato involuntário de como a arte pode ser, ao mesmo tempo, fascinante e falha — assim como seus personagens.

Para quem consegue separar o filme de suas polêmicas, resta um experimento razoavelmente audacioso, cheio de altos e baixos, que desafia a zona de conforto do cinema comercial. Mas, para muitos, especialmente no México, será lembrado como mais um capítulo na longa história de vozes silenciadas em nome do entretenimento.

E, cá entre nós, não é jamais filme para tantas indicações, revelando que o lobby às vezes pode ser o pior inimigo nestes casos. Principalmente para a Netflix, que agora precisa mudar urgentemente a sua estratégia de divulgação do filme, fugindo das polêmicas de sua protagonista de forma quase vexatória.

Uma implosão histórica de um filme que era o imenso favorito há pouco mais de um mês. A terra plana não gira, ela capota.


EMILIA PÉREZ
Ano de produção: 2024
Direção: Jacques Audiard
Elenco principal:

  • Karla Sofía Gascón
  • Zoe Saldaña
  • Selena Gomez
  • Adriana Paz
    Duração: 131 minutos (2h11m)

Sinopse resumida: O filme acompanha a jornada de um chefão do narcotráfico que, após uma transição de gênero, busca redenção em meio a uma trama repleta de tensão e reflexões sobre identidade. Misturando elementos de musical, thriller e drama, a obra explora temas como transformação pessoal, culpa e os impactos da violência estrutural.

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