“Eu contenho multidões”: A Vida de Chuck e o cinema de Mike Flanagan

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NOTA: ★★★★

Mike Flanagan volta a explorar o território no qual se sente mais confortável: aquele espaço tênue entre o sobrenatural e o cotidiano.

E faz isso com a mesma elegância e contundência narrativa que vimos em A Maldição da Residência Hill, Missa da Meia-Noite e A Queda da Casa de Usher. Flanagan já provou ser um dos diretores mais sensíveis da atualidade, capaz de transformar o terror em um veículo para falar de família, fé, luto e culpa. Mais do que sustos, suas obras nos oferecem um mergulho em personagens quebrados, que encontram no fantástico uma forma de expor suas dores e esperanças. E em A Vida de Chuck, adaptação de um conto de Stephen King, isso não poderia estar mais evidente.

O filme parte do fim para o começo – literalmente. Sua estrutura narrativa é invertida: começamos pelo terceiro ato e, aos poucos, remontamos os pedaços da vida de um homem comum chamado Chuck. Ou talvez nem tão comum assim. O início é desconcertante: um mundo em colapso, catástrofes inexplicáveis, anúncios luminosos e cartazes espalhados pela cidade agradecendo os 39 anos de vida de um tal Chuck, interpretado nesta fase por Tom Hiddleston. Quem é ele? Por que sua existência parece ter algum peso cósmico no destino da humanidade? O mistério se instala de forma sutil e envolvente, como se abríssemos um álbum de memórias de trás para frente, descobrindo pouco a pouco quem foi esse homem e por que sua vida importa.

Ao retornar para a adolescência e, depois, à infância de Chuck – vivida ao lado dos avós, interpretados com doçura por Mark Hamill e Mia Sara -, o filme mergulha em um drama mais íntimo. Aqui está a delicadeza de Flanagan: lidar com a família de Chuck quando criança e adolescente (os excelentes Benjamin Pajak e Jacob Tremblay) não como uma simples origem, mas como o alicerce que sustentará sua vida. Cada experiência, cada gesto de cuidado, cada pequena descoberta molda a forma como ele enxerga o mundo. E Flanagan, ao costurar dança, música e até matemática dentro da narrativa, reforça a ideia de que tudo na vida é intrinsecamente ligado, mesmo que a gente não perceba isso.

No segundo ato, Tom Hiddleston nos entrega um dos grandes momentos do cinema em 2025. Como Chuck, ele se lança em uma dança desamarrada, espontânea, quase infantil. É uma celebração da vida em sua forma mais pura. Esse instante mostra o quanto o personagem fazia questão de aproveitar os menores momentos, sem esperar pelo grande evento. É uma cena que, sozinha, já justifica o filme inteiro – e que ficará como uma das mais emblemáticas do ano.

Essa sensibilidade tem muito a ver com a própria essência do conto de Stephen King. Vale lembrar que King, embora seja celebrado como mestre do terror, também escreveu algumas das histórias mais humanas e emocionantes do cinema. Um Sonho de Liberdade e À Espera de um Milagre não trazem monstros ou casas mal-assombradas (talvez um pouco), mas falam de amizade, esperança e da luta pela dignidade. A Vida de Chuck caminha nessa mesma direção, onde o sobrenatural é pano de fundo para um retrato melancólico e poético sobre o que significa estar vivo.

E não é só Chuck que importa: Flanagan dedica tempo a todos os personagens que cruzam o caminho dele, mesmo que por alguns minutos de tela. Há uma professora que o incentiva, um colega de trabalho que o provoca a arriscar, uma vizinha que o acolhe. São figuras aparentemente pequenas, mas apresentadas com a sensibilidade típica de Stephen King: cada detalhe, cada gesto, cada frase de diálogo carrega uma importância que reverbera muito além da cena. O filme entende que nossa vida não é apenas feita do que vivemos sozinhos, mas também da forma como somos moldados por aqueles que passam por nós – mesmo que por instantes.

Sim, há momentos em que o filme se aproxima perigosamente de um discurso motivacional de autoajuda. Por sorte, Flanagan conhece os atalhos para escapar disso. O que ele entrega, no fundo, é um olhar sensível sobre a finitude e a memória. Um lembrete de que não somos feitos apenas do que vivemos, mas também da forma como lembramos – e de como cada pequeno instante pode se tornar uma peça essencial da nossa história pessoal. Os sonhos que enterramos, os amores que deixamos passar, as músicas que deixamos de dançar, as chances que ainda podemos tentar de novo.

E é nesse ponto que o filme resgata uma das frases mais emblemáticas da literatura: “Eu me contradigo? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou amplo, contenho multidões, de Walt Whitman. No contexto da história, essa ideia ganha uma força imensa. Dentro de cada um de nós existe um universo inteiro – lembranças, sonhos, dores, amores, músicas e histórias que nos definem. Somos complexos, contraditórios, infinitos.

No fim, A Vida de Chuck não fala sobre salvar o mundo. Ele fala sobre perceber que o mundo já está salvo nas pequenas histórias que vivemos, nas memórias que carregamos e nos instantes que parecem banais, mas que se transformam em eternidade quando lembrados. Flanagan, mais uma vez, nos convida não a temer a morte, mas a celebrar a vida.


🎬 A VIDA DE CHUCK
Direção: Mike Flanagan
Elenco: Tom Hiddleston, Mark Hamill, Mia Sara, Jacob Tremblay, Kate Siegel, Karen Gillan, Benjamin Pajak
Gênero: Drama / Fantasia
Duração: 2h05
Classificação Indicativa: 14 anos
Lançamento: 2025
Distribuição: Warner Bros.


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