A Meia-irmã Feia: o espelho distorcido de Cinderela

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NOTA: ★★★★

O conto da Cinderela sempre foi um terreno fértil para releituras, adaptações e distorções. E a vertente do terror, convenhamos, não é novidade alguma. Afinal, as versões originais registradas pelos Irmãos Grimm já eram recheadas de crueldade, com antagonistas obrigadas a dançar com sapatos em brasa ou com os olhos furados por corvos . Em A Meia-irmã Feia, produção norueguesa dirigida por Emilie Blichfeldt, essa herança sombria é revisitada de forma visceral. A diretora retira o foco da moça doce que perde o sapatinho e o desloca para quem sempre foi tratada como vilã descartável: a irmã feia.

Aqui, a protagonista é Elvira, vivida por Lea Myren, uma jovem que tenta atender às expectativas de beleza e sucesso impostas por todos ao seu redor. A mãe, Rebekka, interpretada por Ane Dahl Torp, é uma mulher obcecada por status e aparência, disposta a tudo para garantir um casamento vantajoso para a filha. Já Agnes, a versão de Cinderela interpretada por Thea Sofie Loch Næss, é bem diferente da figura doce e passiva das histórias infantis. Fria, competitiva e até manipuladora, ela ajuda a descontruir o ideal de pureza que sempre cercou a personagem.

Blichfeldt transforma a narrativa clássica num retrato cruel sobre a pressão estética e a violência simbólica que moldam o corpo feminino. A madrasta casa-se com o pai de Cinderela acreditando que ele é rico, mas logo descobre que tudo não passa de fachada. O castelo, com sua riqueza em decadência, reflete o mesmo vazio moral dos personagens. Os interiores sem cor contrastam com o brilho superficial da realeza, criando uma sensação de beleza apodrecida. A diretora mescla referências de época com elementos contemporâneos na trilha sonora e na montagem. As músicas transitam entre orquestrações sutis e sintetizadores modernos, o que dá ao filme uma atmosfera atemporal, enquanto os cortes secos e o ritmo clínico reforçam a frieza do tema.

As semelhanças com A Substância, de Coralie Fargeat, são inevitáveis. Assim como no premiado body horror francês, o corpo feminino é aqui tratado como campo de batalha. A carne, a transformação e a dor são metáforas visuais para a obsessão por perfeição. A influência de David Cronenberg é clara na forma como o horror surge de dentro, no desconforto físico que acompanha cada cirurgia, dieta e procedimento estético. É o tipo de horror que não se contenta em assustar, mas quer fazer o espectador sentir.

O filme também evidencia que a opressão estética não vem apenas dos homens. O sistema aqui é sustentado por mulheres que perpetuam essas exigências, de professoras de balé a tutoras de etiqueta, todas treinando meninas para agradar e servir. Elvira é moldada como um produto, lapidada para ser desejada, enquanto sua humanidade vai se perdendo. A cena em que Rebekka decide não enterrar o marido morto para investir nas cirurgias da filha sintetiza toda a decadência moral que o filme quer denunciar.

E se o conto de fadas é, por definição, um lugar de magia e esperança, o filme nos lembra que ele também sempre foi um espaço de violência. Desde os Grimm, as mulheres feias, as madrastas e as bruxas eram punidas com torturas físicas ou humilhações públicas. Blichfeldt apenas torna explícito o que essas histórias sempre sugeriram: a beleza é uma forma de poder, e quem não a possui precisa pagar o preço.

No fim das contas, The Ugly Stepsister é uma estreia poderosa. Um filme que não teme o desconforto, que mergulha na obsessão pela aparência e transforma o corpo em símbolo de decadência social e emocional. É uma releitura afiada e corajosa de um conto conhecido demais, que encontra no horror corporal um meio de expor feridas bem reais. O resultado é um espelho distorcido, mas inegavelmente revelador, sobre o absurdo de tentar caber em moldes – e em sapatinhos – que nunca foram feitos para você.


🎬 THE UGLY STEPSISTER
Direção: Emilie Blichfeldt
Elenco: Lea Myren, Ane Dahl Torp, Thea Sofie Loch Næss
Gênero: Horror / Body Horror / Drama Psicológico
Duração: 1h47
Origem: Noruega
Lançamento: 2025



E você, já imaginou um conto de fadas contado pelo ponto de vista da “vilã”?
A Meia-irmã Feia te faz olhar para o espelho e repensar o que é beleza, poder e monstruosidade.
Conte aqui nos comentários: que outro conto clássico você gostaria de ver transformado em um filme de terror?

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