NOTA: ★★★★1/2
Na madrugada de uma pequena cidade americana, dezessete crianças de uma mesma turma da escola despertam ao mesmo tempo, exatamente às 2h17. Como que guiadas por uma força invisível, elas saem correndo de suas casas, desaparecendo na escuridão. No dia seguinte, nenhuma retorna. O único que fica para trás é Alex (Cary Christopher), um jovem introspectivo que carrega nas costas o peso de uma tragédia sem explicação. No centro desse enigma, sua professora Justine (Julia Garner) passa a ser vista como a principal suspeita – e também como a face da incompreensão coletiva.
Essa é a premissa inquietante de A Hora do Mal, novo filme de Zach Cregger, diretor que já havia assombrado plateias com o também ótimo Noites Brutais. Aqui, ele confirma seu talento em criar uma atmosfera sufocante e evitar os caminhos fáceis do gênero. Não há sustos artificiais ou jump scares gratuitos. O terror se constrói lentamente, capítulo após capítulo, como uma ferida que se abre diante do espectador.

A narrativa é dividida em segmentos, cada um do ponto de vista de um personagem diferente. A professora suspeita, o pai (Josh Brolin) que busca uma resposta para o desaparecimento do filho, um policial que enfrenta o alcoolismo, um jovem mergulhado nas drogas, o diretor da escola e o próprio Alex, sobrevivente da noite fatídica. Cada olhar acrescenta uma camada à trama, e o espectador vai montando o quebra-cabeça à medida que descobre como esses destinos se entrelaçam. Essa estrutura lembra a ousadia de Magnólia, de Paul Thomas Anderson, em que cada personagem é protagonista de seu próprio drama.
Essa estrutura não serve apenas como recurso narrativo: ao alternar perspectivas, Cregger expõe as fissuras emocionais e os desajustes psicológicos que unem todos os personagens. Justine ultrapassa os limites da relação entre professora e alunos; Archer não consegue dizer ao filho que o ama até ser tarde demais; o policial tenta controlar a própria dependência alcoólica enquanto patrulha as ruas; e o jovem viciado se perde em becos e alucinações. Não são estereótipos, mas figuras complexas, marcadas por falhas humanas. O desaparecimento das crianças, nesse contexto, torna-se um espelho das fragilidades e impotências que corroem aquela comunidade.
O título original, Weapons (“Armas”), explicita a metáfora central. Não se trata apenas de um mistério sobrenatural, mas também uma alegoria sobre a violência armamentista que assombra os Estados Unidos. Há uma cena particularmente simbólica: o personagem de Josh Brolin sonha com uma AR-15 pairando no céu, marcada com a hora exata do desaparecimento. É impossível não associar aos massacres escolares que, tragicamente, fazem parte da rotina americana. As crianças correndo na noite, em formação quase militar, lembram tanto flechas lançadas ao vento quanto aviões prestes a atacar. Não por acaso, o pai tem o nome de Archer – o arqueiro que aponta sua arma para o seu alvo de forma inexorável.

Esse diálogo com o real dá ao filme um peso imenso. O terror aqui não é apenas o medo do desconhecido, mas a consciência de que a violência já faz parte da vida cotidiana. Ao mesmo tempo, Cregger conduz a narrativa como um conto de fadas sombrio. O filme começa e termina com a narração de uma criança, e em determinado momento o carro da professora é pichado com a palavra bruxa. Como em uma fábula macabra, Justine é a vilã escolhida por uma comunidade incapaz de lidar com seus próprios demônios. Mas talvez ela seja apenas mais um peão neste xadrez macabro estabelecido pelo roteiro afiado de Cregger.
O elenco traduz essa ambiguidade com brilhantismo. Julia Garner entrega uma presença enigmática, que oscila entre fragilidade e ameaça. Josh Brolin encarna um pai dominado pela impotência, preso a um papel de liderança que nunca consegue exercer. E Cary Christopher, como Alex, traz ao filme a dor mais genuína: a de um menino que sobreviveu, mas que jamais poderá voltar a ser apenas criança.
Durante boa parte da projeção, Cregger aposta na construção paciente do suspense. Pequenos detalhes são jogados na tela, como pistas de um quebra-cabeça. O público é convidado a teorizar, a tentar prever o que houve com as crianças. Mas quando a revelação chega, na última meia hora, o filme muda de tom. A atmosfera opressiva dá lugar a um clímax caótico, quase farsesco, em que o humor e a sátira irrompem sem pedir licença. É um movimento arriscado, que pode afastar alguns espectadores, mas que demonstra coragem e autenticidade.

Esse rompimento lembra escolhas ousadas de outros cineastas recentes – como Coralie Fargeat em A Substância – ao abandonar o tom inicial em favor de um final explosivo e desconcertante. O resultado é uma catarse que mistura horror, ironia e risos nervosos. Não é uma conclusão convencional, mas justamente por isso é memorável.
Mesmo assim, o desfecho não traz alívio. Ao contrário, é agridoce, deixando no espectador a sensação de que nada voltará a ser como antes. O filme termina em aberto, com ecos do conto de fadas distorcido, sugerindo que a infância perdida não pode ser recuperada. O mistério é revelado, mas a ferida continua aberta — no menino, nos pais, na cidade e, sobretudo, no público que assiste.
A Hora do Mal é mais do que um filme de terror. É um retrato ácido da sociedade americana, de seus vícios, silêncios e violências. É um mergulho em personagens quebrados, em famílias que não conseguem se comunicar, em comunidades que escolhem bruxas para queimar em vez de enfrentar seus próprios monstros. No fim, o verdadeiro horror não está nas crianças desaparecidas, mas naquilo que todos já haviam perdido muito antes daquela noite às 2h17.
Título original: Weapons
Título no Brasil: A Hora do Mal
Lançamento: 2025 (Brasil)
Direção: Zach Cregger (Noites Brutais)
Elenco: Julia Garner (Justine), Josh Brolin (Archer), Alden Ehrenreich (Paul), Austin Abrams (James), Cary Christopher (Alex)
Gênero: Terror / Suspense Psicológico
Duração: 2h8
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