Sexo indefinido. O drama de quem nasce com ambigüidade sexual

“Muitos recém-nascidos com essas patologias são registrados e criados em um sexo que na verdade não corresponde à sua condição clínica e psicossocial”, explica Ângela Spinola e Castro, responsável

Luzidéia Aguiar Barbosa de Almeida é uma das psicólogas que ajudam os portadores dessas patologias a entenderem e aceitarem melhor sua condição.

O cirurgião Renato Frota de Albuquerque Maranhão é quem analisa as dificuldades técnicas envolvidas na correção do genital externo ambíguo

A maior expectativa dos pais, quando não é possível saber o sexo da criança pela ultra-sonografia, é ouvir do médico, logo após o nascimento, se o bebê é menino ou menina. Em geral, essa pergunta pode ser respondida prontamente pelo médico, mas há situações em que mesmo um profissional de saúde tem dificuldade em identificar o sexo do bebê. Trata-se de crianças com sexo indefinido

O problema tem origem genética. São anomalias raras que tornam os genitais ambíguos e difíceis de ser diferenciados. A mais comum delas, que atinge uma criança a cada 14.500 nascimentos, faz as meninas apresentarem uma masculinização no genital externo. Nos meninos, não provoca alteração na genitália externa, mas pode adiantar o processo da puberdade. Apesar de os pais perceberem algo de estranho em seu bebê, é comum o diagnóstico ser feito tardiamente, devido à falta de experiência dos médicos com esse tipo de distúrbio.

Quanto mais cedo for realizada a avaliação e abordado o problema, menos traumático será para a criança e para a família. ?Muitos recém-nascidos são registrados e criados em um sexo que nem sempre corresponde ao mais adequado de acordo com sua condição clínica, hormonal e psicossocial?, explica Ângela Spinola e Castro, chefe do Setor de Endocrinologia Pediátrica e do Adolescente da Unifesp e responsável pelo Ambulatório de Anomalias da Determinação e Diferenciação Sexual, do Hospital São Paulo.

O caso de Gabriela ilustra uma das situações mais comuns dentre essas patologias do sexo ambíguo. O que seria uma simples cirurgia de hérnia na menina, na época com seis anos, virou um pesadelo para a mãe Lúcia e seu marido (os nomes da mãe e da criança foram trocados para preservar suas identidades). A hérnia de sua filha era, na verdade, um testículo interno. ?Quando Gabriela nasceu, percebi que ela tinha o clitóris maior que o normal, mas os médicos sempre disseram que ela não tinha nada?, conta Lúcia.

A criança apresenta uma das várias formas de pseudo-hermafroditismo masculino. Essa disfunção apresenta grande variabilidade, mas, de um modo geral, a criança tem testículos internos que produzem testosterona e possui uma vagina e um pênis pequeno, semelhante a um clitóris aumentado, porque seu organismo não responde ao hormônio masculino de forma adequada.

O problema é amenizado com cirurgias plásticas, em que os testículos são retirados, e o clitóris, diminuído. Na maioria dos casos, essas pessoas são inférteis. Gabriela, por exemplo, apesar de possuir uma vagina, não tem ovários e útero, e precisará de reposição hormonal a partir da puberdade, para que desenvolva e mantenha os caracteres sexuais femininos. Diferentemente dessa disfunção, no hermafroditismo verdadeiro a criança nasce com ovário e testículo que funcionam de maneira independente um do outro e eventualmente pode ser fértil.

Para que a família e o paciente entendam e aceitem melhor a patologia, o ambulatório fornece também suporte psicológico por tempo indeterminado. ?Procuramos mostrar aos portadores dessas patologias que o fato de não poderem ter filhos não os impede de casar. Criar é tão ou mais importante que gerar uma criança?, afirma Luzidéia Aguiar Barbosa de Almeida, uma das psicólogas do ambulatório.

Decisões difíceis

Nem sempre o diagnóstico dessas patologias ? desenvolvidas até o terceiro ou quarto mês de gestação ? e a escolha do melhor tratamento são fáceis para a equipe médica multidisciplinar do ambulatório, criado em 1984. Psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas, cirurgiões pediatras, geneticistas e radiologistas realizam vários exames laboratoriais para investigar as estruturas sexuais internas do paciente, seus tipos de cromossomos e seu perfil hormonal. Fazem também uma análise psicológica do paciente e da família para decidir qual a conduta mais adequada a ser apresentada aos pais.

De acordo com Ângela, quando a criança é pequena e ainda não tem firmado o seu sexo psicológico ? aquele ao qual ela acredita pertencer ? leva-se em conta quais estruturas sexuais internas estão mais preservadas. Nesse momento, entra em cena a experiência do cirurgião pediatra Renato Frota de Albuquerque Maranhão. Ele analisa as dificuldades técnicas envolvidas na correção da genitália externa ambígua.

Maranhão, no entanto, explica que nem sempre é possível adequar a pessoa ao sexo que ela apresenta mais preservado. Segundo ele, apesar de todo o avanço das técnicas cirúrgicas, não há como construir um órgão sexual masculino competente para que a pessoa possa vir a ter uma relação sexual satisfatória no futuro, se ela apresentar uma genitália muito pouco masculinizada. Por isso, nesses casos, a decisão mais adequada é maximizar as características femininas que o paciente apresenta. ?Esse tipo de procedimento precisa ser analisado caso a caso, pois as generalizações são muito arriscadas?, explica Ângela Spinola. ?Assim como nos indivíduos com genitais normais, não existe garantia de que a criança com os genitais ambíguos corrigidos ficará sexualmente adequada e feliz na vida adulta. ”

A endocrinologista afirma que não são raros os casos em que essa insatisfação acontece ainda na infância. Para ela, além das questões psicológicas há também a dificuldade dos pais em criar e educar a criança de maneira diferente da que estavam habituados. As dúvidas e inseguranças dos pais são abordadas durante o atendimento psicológico. Raul Gorayeb, chefe do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Unifesp, acompanha há dez anos os pacientes do ambulatório, que hoje registra cerca de 250 casos. Segundo ele, não houve um só caso em que os pais não tivessem intuído que seu filho apresentava algum tipo de problema em relação à sexualidade. ?O medo e as dificuldades para enfrentar o problema fazem com que as pessoas não consigam entender que a identidade sexual psicológica é herdada pelo contexto da vivência pessoal, e não apenas pelo fator biológico.

Para evitar que surjam outros casos semelhantes dentro da mesma família, a equipe realiza o chamado aconselhamento genético. Por meio de exames é possível saber se os pais são portadores do gene deficiente e qual a probabilidade de esses distúrbios se repetirem nas futuras gerações. No momento, o serviço realiza essa pesquisa genética em colaboração com o Instituto de Biociências IV da USP (Universidade de São Paulo). Lene Garcia Barbosa, endocrinologista responsável pela realização desses exames, explica que, nos últimos seis meses, foram descritas cinco novas mutações que não atingem apenas os pacientes e seus pais, mas outros familiares, como irmãos, primos e tios. ?Nós aconselhamos as mulheres que possuem essa mutação a não terem mais filhos, pois o risco de reincidência é de 50%?, afirma Ângela Spinola.

Filho sem registro

A endocrinologista orienta os pais para que não registrem imediatamente a criança nos casos em que haja dúvida sobre o sexo do bebê. De acordo com ela, a maternidade é obrigada a fornecer uma declaração que especifique que a criança nasceu com o sexo ainda não determinado e precisa de uma avaliação médica especializada, evitando as penalidades financeiras para quem não registra o filho em até 15 dias.

Porém, há maternidades que realizam o exame cromossômico do bebê e acabam declarando que a criança é menina ou menino. Esse, segundo Ângela, é um erro que pode prolongar ainda mais o drama familiar. ?Com isso, os pais podem registrar a criança erroneamente e, no futuro, precisariam entrar na Justiça para corrigir o registro civil de nascimento. ”

Rita de Cássia Curvo Leite, professora de direito civil da PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB/SP (Ordem dos Advogados do Brasil/São Paulo), explica que os processos para alteração do registro de nascimento podem demorar. ?Tudo vai depender do laudo médico e da necessidade de passar pela perícia médica do Estado.” Rita aconselha as pessoas que não possuem recursos financeiros para custear advogado a procurar os serviços gratuitos de órgão públicos, disponíveis em todos os estados brasileiros, como a Procuradoria de Assistência Judiciária do Estado e a Vara da Infância e da Juventude.

Além do ambulatório do Hospital São Paulo, outras instituições como a USP, a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo prestam atendimento médico gratuito e especializado para portadores desses distúrbios e para seus pais.

Serviço
Ambulatório de Pediatria do Hospital São Paulo.
Setor de Endocrinologia
Rua Pedro de Toledo, 650, 1º andar, São Paulo
Tel: (11) 5539-3929

(*) Esta reportagem integra a 3ª edição da revista Saúde Paulista, uma publicação trimestral do Complexo Unifesp/SPDM – www.unifesp.br/comunicacao/.

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