O genoma humano e a revolução que não veio

O dia 26 de junho de 2000 certamente ficará marcado por décadas na história da ciência, pois foi nesta data que os cientistas revelaram a ordem correta das substâncias bioquímicas que compõem o código genético humano.

Foram mais de 10 anos de pesquisas em centenas de laboratórios espalhados por mais de 20 países do mundo, todos com o mesmo objetivo: decifrar o “código da vida”.

Quando recém-nascido o ser humano tem cerca de 26 bilhões de células, enquanto em um adulto esse número salta para cerca de 50 trilhões.

No centro de cada uma dessas células está o nosso genoma, termo que se refere ao conteúdo total de material genético de um organismo vivo, seja uma bactéria, um vírus, uma mosca ou um humano.

Para Salmo Raskin, o geneticista curitibano que fez parte do Hugo (Human Genome Organisation), que coordenou os estudos científicos internacionais, de uma forma didática, o genoma humano pode ser comparado a uma grande enciclopédia de 23 volumes, que representariam nossos 23 cromossomos que, por sua vez, trazem a mensagem fundamental do enredo da vida, ou seja, os genes.

Ele explica, que mesmo os genes, apesar de tão minúsculos que não podem ser visualizados com o mais potente microscópio imaginável, não são unidades indivisíveis.

Eles são formados por vários pedaços chamados de exons, que se combinam para dar forma aos aminoácidos, componentes básicos das proteínas. “Dentro dos genes, separando os vários exons, existem ainda os introns, que, até então, pareciam não ter significado”, decifra o especialista.

Pouco se sabe

Assim, o primeiro passo para desvendar esses mistérios seria descobrir em qual ordem a natureza posicionou essa sequência de três bilhões de A, T, C e Gs. Dez anos depois, ainda é prematuro fazer uma análise completa do que representa tudo o que foi revelado ao mundo naquela data, até porque os próprios cientistas ainda desconhecem o significado de boa parte das sequências que descobriram.

Por outro lado, alguns aspectos ainda preocupam a comunidade científica. Os geneticistas compreendem hoje que conceitos básicos, como gene, regulação gênica, exons e introns, são muito mais complexos do que se imaginava.

“Só o fato de muito recentemente termos descoberto que ao menos metade do lixo genético é composto por sequências fundamentais na regulação do genoma, já mostra o quanto pouco sabemos sobre a genética humana, depois de anos após o anúncio do sequenciamento”, diz Salmo Raskin.

Para o cientista, é frustrante saber que, em 2010, o conhecimento científico de genética humana é infinitamente menor do que se podia imaginar há uma década e que há pressões cada vez maiores para explicar como esses achados se encaixam.

Apesar do enorme avanço na capacidade de diagnosticar uma das 10 mil doenças genéticas raras, ou se uma pessoa tem predisposição a ter filhos com alguma delas, no que se refere às doenças mais comuns, o impacto foi até o momento muito menor.

“Não sabemos quais e quantos genes fazem parte do componente genético de doenças como hipertensão, diabetes, obesidade, câncer, depressão, esquizofrenia, entre outras”, resume o geneticista.

No que se refere a transformar os conhecimentos adquiridos em tratamentos, poucas drogas foram desenvolvidas nos últimos 10 anos baseadas nas descobertas do genoma humano.

Lições aprendidas

* O genoma humano teria maior potencial de produção de formas alternativas de proteínas, e a hierarquia das espécies estaria ao nível proteico e não genômico.

* O sequenciamento e as pesquisas que se sucederam demonstram que uma parte dos 98% do código genético que não produzem proteínas, são resquícios do passado evolutivo do ser humano, sequências que foram um dia ativas, produzindo proteínas há milhares ou milhões de anos e que a evolução fez com que se tornassem inativas.

* Agora que o genoma completo de mais de 20 seres humanos foi sequenciado, sabemos que existe uma variabilidade dez vezes maior do, que a inicialmente imaginada entre as bases nitrogenadas de dois seres humanos.

* Genomas completos de mais de 3.800 outras espécies já foram sequenciados e analisados, inclusive de mamíferos muito próximos ao ser humano, como o camundongo, o rato e o chimpanzé. Desde então, é possível, com grande precisão, comparar os genomas de espécies diferentes, tentando compreender o que diferencia e o que assemelha o ser humano de outras espécies.

* Aprendemos a desenvolver tecnologias que sequenciam o genoma de forma mais rápida, com mais qualidade e menor custo.

Para onde vamos?

Mesmo enfrentando barreiras éticas, legais, morais, filosóficas, culturais e religiosas, o conhecimento a ser adquirido do genoma poderá ainda trazer boa parte das respostas para os enigmas do ser humano, entre eles: “de onde viemos?”, “quem somos?” e “para onde iremos?”. Essas perguntas poderão ser, parcialmente, respondidas, quando compreendermos a real mensagem que o genoma pode nos revelar.

De acordo com Salmo Raskin, a descoberta de um número bem menor de genes do que imaginávamos, por exemplo, traz da natureza mais uma lição a ser aprendida pelos seres humanos: “a de que não existe um determinismo genético para tudo, ou seja, nem tudo está escrito em nossos genes.” Traz também uma lição de respeito aos outros seres vivos e ao meio ambiente.

Com efeito, os cientistas devem continuar a ser movidos pelo instinto e ter garantida a liberdade de seguir em suas pesquisas sem se preocupar onde chegarão. “Dependerá da sociedade organizada determinar para os caminhos que os pesquisadores devem caminhar”, avalia.

O especialista explica que os cientistas precisarão aprender a trabalhar em equipes interdisciplinares, que possam produzir conhecimento não só em pesquisa, mas em questões, como propriedade intelectual, consentimento informado, legislações que protejam a população de discriminação genética, preservando suas privacidades. Também será preciso treinar os novos médicos, educadores, gestores públicos e a população em geral para que possam compreender a medicina genômica.

Por fim, será preciso formar muito mais profissionais treinados em aconselhamento genético, um processo de comunicação sobre problemas humanos associados com a ocorrência ou risco de recorrência de uma doença genética na família, por meio do qual os pacientes e/ou parentes que possuam ou estão em risco de possuir uma doença hereditária são informados sobre as características da condição, a probabilidade ou risco de desenvolvê-la ou transmiti-la, e as opções pelas quais pode ser prevenida ou melhorada.

Esforço inútil

No Brasil, o quadro ainda é preocupante, já que o país tem um médico geneticista para cada milhão de habitantes, 80% deles concentrados nas regiões Sul e Sudeste.

É preciso que políticos e gestores de saúde compreendam que se o aconselhamento genético não estiver disponível para a maioria da população, todo o esforço em desvendar o genoma humano será quase inútil. Será preciso possibilitar aos pacientes do Sistema Único de saúde (SUS) acesso aos serviços básicos de genética, além de promover uma mudança urgente e radical na forma como a saúde é planejada e (des)valorizada em nosso país. “Isso se realmente queremos um dia poder usufruir da revolução genética na medicina”, completa Salmo Raskin.

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